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segunda-feira, 15 de abril de 2013

“CRISE”, hoje em dia, significa “Você deve obedecer!”

"O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro", afirma Giorgio Agamben, em entrevista concedida a Peppe Salvà e publicada por Ragusa News, em 16-08-2012.
Giorgio Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, Giorgio Agamben foi definido pelo “Times” e por “Le Monde” como uma das 10 mais importantes cabeças pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo transcorreu um longo período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista. Ei-la.
O governo Monti invoca a crise e o estado de necessidade, e parece ser a única saída tanto da catástrofe financeira como das formas indecentes que o poder tinha assumido na Itália. A convocação de Monti era a única saída, ou poderia, pelo contrário, servir de pretexto para impor uma séria limitação às liberdades democráticas?
“Crise” e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. “Crise” hoje em dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para todos que a chamada “crise” já dura há decénios e nada mais é senão o modo normal como funciona o capitalismo no nosso tempo. E trata-se de um funcionamento que nada tem de racional.
Para entendermos o que está a acontecer, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele tornou-se Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas - assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram da sua soberania), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso, o facto de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o título de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só numa perspetiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.
A crise económica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser vista como condição de crise de toda a modernidade?
A crise atravessada pela Europa não é apenas um problema económico, como se gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós, europeus – são obrigados a interrogar o passado. Eu disse “nós, europeus”, pois parece-me que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos ainda económico, mas talvez consista nisso, no facto de que o homem europeu – à diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e o passado tem um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as contas com a sua história.
O passado não é, pois, apenas um património de bens e de tradições, de memórias e de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar) têm relativamente às suas cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste sentido, ao destruírem, com o cimento, com as autoestradas e a Alta Velocidade, a paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e por à venda a própria identidade.
Há muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente, Alexandre Kojève, afirmava que o ‘homo sapiens’ tinha chegado ao fim da sua história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou o snobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas cerimónias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém humano ao preço de renunciar todo o conteúdo histórico, a Europa poderia oferecer a alternativa de uma cultura que continua a ser humana e vital, mesmo depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma nova vida.
A sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o ponto de mediação possível entre os dois polos?

As minhas investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem, na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava o seu lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha o seu lugar na cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi incluída e capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento negativo do poder. Tal separação atinge a sua forma extrema na biopolítica moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que está em jogo na política. O que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no facto de que é o poder (também na forma da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, trata-se de pensar numa política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da sua forma, que jamais seja vida nua.
O mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano comum se põe frente ao mundo da política tem a ver especificamente com a condição italiana ou é de algum modo inevitável?
Acredito que atualmente estamos frente a um fenómeno novo, que vai além do desencanto e da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta inteiro. O que está a acontecer é uma transformação radical das categorias com que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este modelo seja, do ponto de vista do poder, mais económico e funcional é provado pelo facto de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através dos media e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias decisões com a violência. As formas da política, por nós conhecidas – o Estado nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Continuam vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”.
O estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante a incerteza na qual vivem quotidianamente. É possível atenuar esta sensação?
Vivemos há decénios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como acontece na economia em que a crise se tornou a condição normal. O estado de exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem democráticos. Poucos sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança, depois do 11 de setembro (na Itália já se tinha começado a partir dos anos de chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente pelo facto de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado de exceção que nunca foi revogado. E certamente não dispunha das possibilidades de controlo (dados biométricos, câmaras de vigilância, telemóveis, cartões de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje, que o Estado considera cada cidadão, um terrorista virtual. Isto não pode senão piorar e tornar impossível aquela participação na política que deveria definir a democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por câmaras de vigilância não é mais um lugar público: é uma prisão.
A grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor, investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que, dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do que o presente?
Otimismo e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta a Ruge: ”a situação desesperada da época em que vivo enche-me de esperança”.
Podemos fazer-lhe uma pergunta sobre a lectio que o senhor deu em Scicli? Houve quem lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma indicação de como sair do xeque-mate no qual a arte contemporânea está envolvida.
Trata-se de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado, de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares problemáticos. Numa sociedade que já não sabe o que fazer do seu passado, a arte encontra-se premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercadorização. E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo, que são os museus de arte contemporânea, as duas coisas coincidem.
Duchamp talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made? Ele toma um objeto de uso qualquer, por exemplo, um mictório, e, introduzindo-o num museu, força-o a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente - a não ser o breve instante que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança aqui a presença: nem a obra, pois trata-se de um objeto de uso qualquer, produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irónico nome falso o mictório não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como “alguém que respira”, um simples ser vivo.
Em todo o caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercadorização. Vocês sabem: o que de facto aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp, enchendo museus com não-obras e performances, que são meros organismos do mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras. Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo estipular o seu preço.
Tradução de Selvino J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

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