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domingo, 13 de novembro de 2011

Gaudeamus, igitur! (Portanto, alegremo-nos!)

Na Sessão Solene de Abertura do Ano Letivo da Universidade Sénior do Rotary Club da Póvoa de Varzim, o Professor Doutor Salvato Trigo, Reitor da Universidade Fernando Pessoa e Rotário, foi o convidado para fazer a Oração de Sapiência, que pela sua riqueza cultural/intelectual e pelo interesse/atualidade do tema reproduzimos aqui e aconselhamos vivamente que a leiam até ao fim, para “consolo” dos seniores e “conselho” para os menos velhos…
SENIORIDADE E VELHICE NA MUDANÇA SOCIAL
Lúcio Séneca, nas suas Cartas, aborda a velhice e a brevidade da vida. O nosso Padre António Vieira também o fez nos seus Sermões, especialmente, o da Quarta-feira da Quaresma. É, pois, bem antigo o assunto da velhice, mas este conceito tem o relativismo próprio de quem o observa. Florbela Espanca, a poeta alentejana, fá-lo no dramatismo do seu dizer poético, prenunciador da tragédia da sua fugaz e intensa vida.
Porque estamos numa Universidade Sénior, do Rotary Club da Póvoa de Varzim, invoquemos essa alentejana no dramatismo do seu dizer poético prenunciador da tragédia de sua fugaz e intensa vida.
Citemos o soneto “Velhinha”:
“Se os que me viram já cheia de graça,
Olharem bem de frente para mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
«Já é velha! Como o tempo passa!»
Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio de oiro que esvoaça!
Deixem correr a vida até ao fim!
Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente…
Já murmuro orações…falo sozinha…
E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente,
Como se fosse um bando de netinhos…”
Estranho certamente nos parecerá que a voz poética se afirme velhinha nos seus vinte e três anos, todavia já marcados pelos sinais do tempo invernal da vida, como diria Hipócrates, que associava a velhice ao Inverno e à idade de 56 anos.
Aristóteles, mais radical, achava que a velhice começava aos 50 anos, enquanto Santo Agostinho, mais generoso, via-a apenas aos 60 anos e, no séc. VI, um discípulo deste, Isadoro de Sevilha, concedia que a velhice só se iniciava aos 70 anos.
Florbela Espanca olhava-se velhinha já aos vinte e três anos, o que conjugado com as opiniões filosóficas anteriores poderá sustentar, desde já, a nossa conclusão de que a velhice não é aionicamente ou evicamente fixada, isto é, não existe uma idade fixa para se proclamar a vetustez.
Escutemos, entretanto, mais um poeta, também ele cantor do tempo que deixa marcas em nós. Refiro-me a Rui Knopfli, poeta luso-moçambicano que embalou seus ritmos nas monçanas águas do Índico.
Assim cantava Knopfli, no seu poema “O Velho”:
“Não envelheço. Torno-me antigo.
O Velho sempre viveu em mim,
sempre o pressenti no olhar
magoado demorando-se nas coisas,
em certa lentidão não premeditada
dos gestos e nas lembranças confusas
de uma outra recuada idade.
Sempre aflorou na mão e na estima
triste que se estende aos amigos,
na aresta de desconsolo que espreita
as minhas horas de amor.
O Velho sempre viveu em mim.
Eis que, enfim, o reboco
se lhe começa a assemelhar.”
Retenhamos a metáfora do reboco a assemelhar-se à velhice que transparece, para invocarmos Espinosa que definia o corpo, em sua obra Ética-Parte I, deste modo: “Um corpo é um pedaço de natureza cuja fronteira é a pele.”
Mas a pele, diz a sabedoria da oratura africana, “é só o embrulho da alma”, por isso ela esconde tantas vezes dimensões espirituais e humanas, imperscrutáveis à sensorialidade visual.
Há, como se vê, um semantema comum entre Espinosa e a sageza negra, na justa medida em que algumas outras proposições da Ética consideram a indissociabilidade do corpo e da mente.
A proposição n.º 15, por exemplo, afirma que “A mente humana é capaz de perceber um grande número de coisas, e fá-lo na proporção em que o seu corpo é capaz de receber um grande número de impressões.”
E, na proposição n.º 22, Espinosa acentua ainda mais a função da mente: “A mente humana percebe não só as modificações do corpo, mas também as ideias de tais modificações.”
Ao considerar indissociável o corpo da mente e esta, a um tempo, mortal como aquele e, todavia, eterna, não na acepção temporal da eternidade ou dum tempo sem tempo, mas somente na dimensão de substância, Espinosa permite-nos compreender melhor a ideia de que a velhice do corpo não é concomitante da velhice da mente.
Aqui introduziríamos, portanto, a distinção necessária entre senioridade e velhice, isto é, a diferença entre o amadurecimento psíquico ou mental (senioridade) e o definhamento biológico (velhice), em que a pele, como fronteira do corpo, nos revela as marcas temporais da idade do enrugamento que o saber da experiência feito sulcou, ao mesmo tempo que nos aconchegamos numa liberdade interior que a memória nos permite degustar.
A senioridade, como escrevia Knopfli, torna-nos antigos, mas não forçosamente velhos. Antigos, porque já nos foi possível tornar o futuro em passado, isto é, já vivemos factos, situações, espaços e tempos que nos ajudam a relativizar a importância, o interesse e o valor das coisas.
A senioridade suplanta em nós a juventude ou a verdura e imaturidade na relação com os outros, na vivência no nosso habitus, como queria Bourdieu. Ser sénior é ser senhor, é assenhorear-se do tempo e da relação existencial com os outros a quem se dá segurança pelo modo como se olha para o mundo. Um modo tranquilo e demorado de ver, uma “lentidão não premeditada nos gestos e nas lembranças confusas / de uma outra recuada idade”, como Knopfli poetava, tenha sido essa idade real ou imaginada como projecção de nós.
A senioridade conduz-nos à senescência (senescĕre do verbo senĕre = estar ou ser velho) como pórtico de uma nova idade em que a veterania assoma, apresentando-nos à velhice, como o último ciclo da vida que nos prepara para o rito de passagem de cá para lá, para que outra vida possa vir de lá para cá.
É aquele rito de passagem que Platão tão bem glosou no diálogo Fédon ou da imortalidade da alma, no qual realça a importância decisiva da morte para a vida, tal como os povos Etruscos já a entendiam ao cunharem o conceito de munthus, espécie de túnel por onde se vem do além, do não existente, para o aquém, para o existente, assim se justificando a vida com a expressão “dar à luz”. Se se vem à luz, é porque se parte das trevas, ou seja, a vida é extraída da morte, em acto do mais puro naturismo em que toda a semente só frutifica depois de morrer, depois de sepultada ou enterrada.
Esse conceito etrusco do munthus originou o latino mundus, donde tiramos o nosso termo mundo, como significando o lugar onde se existe, onde tudo existe. Por isso, também dizemos “vir ao mundo”, para cumprirmos o ciclo vital na roda incessante do tempo como o intervalo entre o antes e o depois.
É nesta compreensão do tempo que cada um constrói a sua senioridade, porque esta é, de facto, uma construção pessoal, individual, em que a nossa casa da vida é feita de materiais mais ou menos nobres, mais ou menos duradouros, em função do capital de cultura que soubermos aforrar para investir no momento certo.
A velhice, essa, é uma construção social, hoje transformada numa instância de germinação dos discursos políticos e de civilização de comportamentos, infelizmente tão distante da nossa própria matriz civilizacional, seja ela a greco-latina seja a judeo-cristã. Nesta, todos nos recordamos da função dos patriarcas; naquela, sabemos bem do papel dos anciãos e dos senadores.
Foram matrizes em que a velhice era venerável e politicamente considerada como estádio superior da existência humana e, como tal, almejável. Em que a velhice era estruturante da organização social, depositária não só da autoridade pública que o viver mais e, portanto, o saber mais lhe conferiam, mas também dum estatuto não apenas de referência outrossim de interpretante do futuro.
É nesta acepção de interpretante do futuro que vemos investida a célebre figura do Velho do Restelo que Camões consagrou na nossa própria tradição histórico-cultural:
“Mas um velho, de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pausada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiência feito,
Tais palavras tirou do experto peito.”
O Velho do Restelo, todavia, não foi escutado e as naus do Gama lá seguiram para Calecute, assim iniciando temerariamente uma história trágico-marítima cheia de “fumos da Índia”, como chamou Afonso de Albuquerque ao nevoeiro de riquezas que toldou a visão ao rei D. Manuel I, a partir de cujo reinado, Portugal começou definitivamente a entristecer, ao mesmo tempo que “o Velho do Restelo” se transformava na metáfora da nossa fatalidade de desvalorizar a sabedoria daqueles que já viveram o futuro que é agora o presente dos jovens.
Com o Velho do Restelo tão enquistado na retórica política, não nos apercebemos da degradação semântica que a noção concreta de idade trouxe ao conceito nobre de velhice.
Tal degradação inicia-se de forma mais avassaladora quando, em França no séc. XVI, a idade passa a ser critério de classificação. Isso ocorreu, porque se começou a registar civilmente os nascimentos que, antes, eram somente objecto de registo paroquial.
A partir de então, as pessoas começam a ter idade civil e a existência condicionada, física e psicologicamente, por um calendário e não mais pelas estações do ano e pelos eventos vários da Natureza ou da vida social que as integrava.
Dir-se-ia, regressando a Espinosa, que se separava, por via disso, a mente do corpo, deixando esta de constituir uma única substância contida numa forma acidentalmente mutável.
Era-se velho, porque se havia atingido ou ultrapassado a idade convencionada para o início da velhice. E, todavia, tudo isto era alegoricamente contrariado pelo Velho Testamento e pelos seus livros do Genesis e do Exodus, em que os patriarcas e, desde logo, Moisés viviam centenas de anos fecundos.
E, no entretanto, hoje, cada vez mais olvidados dessas leituras genesíacas, hipervalorizamos a velhice dos objectos e hipovalorizamos a das pessoas. Àquela conferimos a prestabilidade da decoração invidiosa ou de ostentação social; a esta, à velhice das pessoas, vemo-la como imprestável e socialmente pesada e esconsa.
É esta tecnologia da inversão dos valores que nos vai diminuindo em humanidade e nos torna culturalmente mais pobres, transformando a velhice quase exclusivamente numa questão de Estado, não para dela beneficiar do seu conhecimento e das suas competências, antes, para a tratar como um ónus para a sociedade e permitir que sobre ela se tenha estereotipado o discurso político.
Essa estereotipia começou, porém, no séc. XVII, como se comprova pela simples consulta do dicionário de Richelet. Aí se diferencia a “ velhice masculina” e a “velhice feminina”, sendo que a velhice dos homens é positivamente valorada por atributos morais e a das mulheres, pejorativamente pelos aspectos físicos.
Richelet, entretanto, considerava que quer a mulher quer o homem são velhos depois dos 40 anos e até aos 70 anos, mas enquanto os homens são agradáveis na sua velhice, as mulheres tornavam-se “fastidiosas, encarquilhadas, barulhentas”.
Indiferente ao dicionário de Richelet, o chanceler Bismark, em 1886, estabeleceu na Europa a reforma aos 65 anos, dando, assim, início a uma cultura social aiónica ou évica, em que a idade acabou por ser violentadora da nossa relação com os outros e, portanto, geradora de estereótipos discursivos ou de linguagem.
Para vermos como a linguagem pode ser traiçoeira em estereótipos da velhice, bastará pensarmos na distorção que alguns fazem ao ligarem, por falsa etimologia, a palavra “velho” (do lat. vetulus) à palavra “velhaco”.
Na aparência gráfico-fonética, parecerá aos incautos que existe algum parentesco entre velho e velhaco, quando, em rigor filológico, velhaco pensa-se que radique no celta *bakallakos (pastor, camponês), derivando daí também o francês bachelier “bacharel”; antes, “jovem que ainda não é cavalheiro”.
Nesta acepção semântica, existe, como se vê, uma antonímia entre “jovem” e “cavalheiro”; vale dizer que o cavalheirismo é uma daquelas dimensões da senioridade, porque construção de nós próprios, que nos torna mais estimados na velhice, aquela idade em que, nas sociedades hierarquizadas, se ganha o estatuto gerontocrático ou do poder dos mais idosos.
Mas esse poder não se determina por qualquer manifestação democrática, antes se conquista pelo respeito e pela autoridade que os menos idosos reconhecem a quem a “universidade da vida” formou pelo trabalho honesto e dedicado, por exemplo, à ética ou aos valores individuais de comportamentos solidários.
É poder que os povos de Bambara, na África ocidental, traduzem eloquentemente no aforismo: “Em África, quando morre um velho, enterra-se uma biblioteca!” Fica-se, portanto, mais pobre.
E entre nós: não haverá, antes, mera reacção de alívio, de desoneração da voz do sentimento ofuscado pelo racionalismo egoísta? Que aproveita, hoje, a nossa sociedade do saber de experiência feito, como cantava Camões, daqueles que têm na memória dos tempos os registos do que vale e do que não vale a pena viver?
E ao mesmo tempo que têm a memória do passado, umas vezes saudosa, outras revoltada, também têm alguns deles a memória do futuro desejado para os netos, para quem os avós deveriam voltar a ser mais avós e menos amas, mais pedagogos (no sentido etimológico da palavra grega de orientador de crianças) e interventivos na construção da personalidade e do carácter que, moldados na primeira infância com rigor, gerarão necessariamente cidadãos mais conscientes da função que devem ter na mudança social e na transformação positiva da sociedade onde nos cabe viver.
Olhar para os avós na perspectiva de que a sua denominação carinhosa significa aqueles que vieram antes e que receberam de trás os ensinamentos e valores de vida a que chamamos vulgarmente “tradição” (trahěre> traditio), isto é, aquilo que transportamos connosco do passado para antecipar o futuro, ligando as duas dimensões do tempo (esta, fictiva; aquela, factual) em que se sustenta a moral, ou seja, o respeito pelos bons costumes, sendo destes, o mais sublime, o mandamento maior da nossa humanidade cristã: amar o próximo como a si mesmo, depois de honrar o pai e a mãe!
Só assim, na vivência plena da liberdade para amar e ser amado, sem a coisificação do amor, antes no respeito pela idiossincrasia do outro, que é sempre um outro e nunca a metade dum nós, porque não há caras-metades, naquele sentido em que ou se tem a cara toda que é a nossa ou não se tem e, então, é-se descarado, só assim, sem anulação do outro por um eu possessivo, como se a pessoa fosse um objecto que se tem para uso exclusivo ou para vantajosa transacção, só assim, poderemos ajudar com a nossa senioridade e velhice tranquilas à mudança social que urge ser feita, para que viver em sociedade não seja, como às vezes parece, punição do criador, antes, a fruição do intervalo que nos coube para existirmos.
Se antes não puderam fruir tanto e tão bem o vosso intervalo existencial, aproveitem agora este tempo de universidade sénior para franquearem a fronteira do pedaço da natureza que é o corpo, na já vista acepção da ética de Espinosa, deixando que por essa raia, que é a pele, se liberte a vossa espiritualidade, o lado de dentro do vosso eu, que, certamente, envolto em silêncio sabe que, se falar livremente com o corpo, envelhecerá mais tranquila e pausadamente.
A senioridade está em nós, mas a velhice está apenas no olhar de quem nos vê. Ser velho é uma inevitabilidade biótica: estar velho é uma maleita pessoal de todos aqueles que desprezam Eros, o deus da Vida, para deixarem livre acesso à insinuação das Parcas.
É necessário, para nos curarmos dessa maleita, um choque cultural? Não o adiemos mais, porque o país está a fenecer de pessimismo, de falta de alegria de viver, e nós precisamos de não continuar agarrados à grandeza do que fomos, sonhando com distâncias e impérios, insinuados pelo mar que tanto nos atrai para sulcarmos águas que Pessoa, na Mensagem, sentia salgadas das lágrimas de Portugal!
Navegar é preciso, já não nas salsas e lacrimosas águas do império, que se desfez, mas no mar interior de nós, buscando um bom porto para acostar a nossa memória e imaginarmos outras partidas, porque viver também é preciso, como Fernando Pessoa tão bem soube dizer! Mas chorar não é preciso!
Gaudeamus, igitur! (Portanto, alegremo-nos!)
Salvato Trigo – Reitor da Universidade Fernando Pessoa e Rotário

2 comentários:

  1. Obrigado, Miguel, por este "momento"!

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  2. Luís
    Para quem para lá caminha, é "revigorante" e a perspetiva de Salvato Trigo é redentora. temos é que fazer por isso...

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