O relatório semestral do Tesouro norte-americano ao Congresso aponta o dedo não só à insuficiente valorização da moeda chinesa por Pequim, mas também a Berlim, que se recusa a "corrigir" o excedente externo excessivo do seu país.
Jorge Nascimento Rodrigues
O Departamento do Tesouro norte-americano resolveu, este ano, no seu relatório semestral ao Congresso, apontar o dedo à Alemanha - em resumo, sem muito economês, o país dirigido pela chanceler Ângela Merkel está a "exportar" riscos graves para a periferia da zona euro e para a economia global.
A crítica é comum a muitos economistas, inclusive europeus, que acusam o mercantilismo alemão de agravar a austeridade no seio da zona euro e impedir uma correção dos desequilíbrios macroeconómicos dentro do próprio espaço do euro e a nível internacional. Mesmo na Alemanha, sublinha a revista alemã Der Spiegel, "os especialistas na sua grande maioria concordam com a abordagem do Tesouro [norte-americano]". O relatório do Tesouro foi publicado a 30 de outubro.
O ministério das Finanças em Berlim reagiu, no dia seguinte, recusando o ponto central das críticas vindas de Washington DC: "Não há desequilíbrios na Alemanha que necessitem de correção. Pelo contrário, a economia alemã inovadora contribui significativamente para o crescimento global através de exportações e da importação de componentes para produtos acabados". O ministério alemão considerou as conclusões do relatório como "incompreensíveis" e retribuiu as críticas, recomendando que os EUA analisassem "a sua situação económica". Esta polémica económica surge no momento em que as sequelas do assunto das escutas por parte da agência norte-americana NSA continuam a salpicar as relações transatlânticas.
Risco de um choque global deflacionista
Na realidade, os países que prosseguem estratégias mercantilistas recusam ver nos excedentes excessivos problemas estruturais para a economia mundial e para as zonas comerciais ou monetárias em que se inserem.
A par de uma quebra brutal no investimento dos países periféricos da zona euro (o que os leva a situações excecionais de excedente externo nos trimestres mais recentes para o caso da Irlanda, Itália e Espanha e, desde o 2.º trimestre de 2013, para Portugal), há o risco de provocar um choque deflacionista em toda a economia mundial, como sublinha o economista Yanis Varoufakis na sua demonstração académica dos efeitos da estratégia alemã publicada na sequência do documento norte-americano.
Tradicionalmente, no relatório semestral do Tesouro ao Congresso sobre "Políticas Económicas Internacionais e Taxas de Câmbio", o bombo da festa costumava ser a China, invariavelmente por causa da sua insuficiente valorização do yuan (ou renminbi) e pelas suas reservas gigantes em divisas.
Apesar da polémica com a Alemanha, o relatório dedica muito mais espaço ao tema da China que ao da zona euro. As dores de cabeça para Washington continuam as mesmas a respeito de Pequim - uma moeda que continua desvalorizada em 5 a 10%, segundo o FMI; um montante gigante de reservas nos cofres do banco central chinês que representam 44% do PIB chinês e que é quase tanto quanto as reservas combinadas de todos os países desenvolvidos; e um excedente na balança básica (somando o excedente externo com o saldo dos fluxos de investimento direto estrangeiro) que subiu para 4,3% do PIB no final do 1.º semestre de 2013.
A assimetria na análise dos excessos por parte da UE
O documento do Tesouro norte-americano explica os fundamentos da sua crítica.
"A Alemanha tem mantido um enorme excedente externo ao longo de toda a crise financeira e, em 2012, o excedente externo nominal foi maior do que o da China [238.500 milhões de dólares contra 193.100 milhões]. O crescimento anémico da procura interna e a dependência nas exportações têm dificultado o reequilíbrio numa altura em que muitos outros países da zona euro têm estado sob uma pressão severa para conter a procura e comprimir as importações no sentido de realizarem o ajustamento. O resultado líquido tem sido um enviesamento para a deflação na zona euro, bem como na economia mundial", lê-se no relatório.
O relatório foi elaborado com base em dados do 1.º semestre de 2013 e em consulta com o sistema da Reserva Federal norte-americano (o banco central) e com a direção e técnicos do FMI, sublinha-se em nota.
Mais adiante, o documento detalha: "O excedente externo da Alemanha subiu acima de 7% na 1.ª metade de 2013, enquanto para a Holanda registou quase 10%. Por outro lado, Espanha, Irlanda, Itália e Portugal também registam excedentes na medida em que as importações desses países se contraíram. Deste modo, o fardo do ajustamento está a ser colocado, desproporcionalmente, nos países periféricos europeus, exacerbando um desemprego extremamente alto, sobretudo entre os jovens, enquanto o ajustamento global da Europa está a ser realizado essencialmente na base da procura de fora da Europa, em vez de resolver as deficiências na procura que existem dentro da Europa".
O Tesouro critica ainda o procedimento de avaliação dos desequilíbrios macroeconómicos da União Europeia que continua enviesado: "o procedimento permanece de certa forma assimétrico e não dá atenção suficiente aos países com excedentes elevados e sustentáveis, como o caso da Alemanha".
A solução é inverter esta política - "Para aliviar o processo de ajustamento na zona euro, os países com excedentes elevados e persistentes têm de impulsionar o crescimento da procura interna e encolher os seus excedentes", escreve-se no relatório.
Por exemplo, se a Alemanha e os outros três países do "centro" (Áustria, Finlândia e Holanda) com notação de crédito triplo A lançassem um programa de 2 anos de aumento do investimento público em 1% do seu PIB, as economias periféricas da zona euro ganhariam com o efeito multiplicador em toda a região. A Irlanda seria a economia mais beneficiada e a Grécia a menos bafejada em termos de impacto no PIB e nas contas externas. Portugal e França ficariam próximos do efeito verificado na Irlanda. As conclusões são de uma simulação realizada pelo economista Jan in 't Veld com base no modelo QUEST da Comissão Europeia e publicada nos "Economic Papers" de outubro ("Fiscal consolidations and spillovers in the Euro area periphery and core", EP 506), a que já nos referimos.
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