Depois da China, é a Espanha quem detém o recorde de quilómetros de caminho-de-ferro de alta velocidade: o resultado de uma ambição que se tornou obsessão, alimentada desde há 20 anos por governos tanto de esquerda como de direita. Hoje, todo um modelo económico é colocado em questão.
Essa aposta, feita desde a inauguração da primeira linha Madrid-Sevilha, em 1992, deu origem a uma poderosa indústria, que gira em torno dessas vias-férreas, que fatura quase 5.000 milhões de euros por ano e que exporta 60% da sua produção. De facto, em 2012, em plena recessão, a indústria ferroviária espanhola foi a 2.ª que mais viu crescer as exportações.
O TGV espanhol (AVE) passou a ser o melhor embaixador da tão traída e transcendida Marca España. O recente êxito do chamado AVE do peregrino, de Medina a Meca, na Arábia Saudita, o maior contrato adjudicado a um consórcio espanhol (6.700 milhões de euros), foi o reconhecimento decisivo dessa imagem da outra Espanha, que, para além da crise, se quer apresentar ao mundo.
Governo e empresas deram as mãos, para vender essa imagem de marca tecnológica genuinamente espanhola apontando a mira para os macroprojectos internacionais de alta velocidade em preparação no Brasil, Estados Unidos, Turquia ou Cazaquistão. Mas o acidente do Alvia, na estação de Santiago de Compostela, pode representar um duro golpe para essa imagem, apesar de nem a via-férrea nem o comboio possam ser considerados estritamente como alta velocidade.
Uma arma eleitoral
Talvez tenha sido esse receio que levou as empresas a guardar um silêncio absoluto em torno do sinistro. Nem mesmo as empresas afetadas disseram uma palavra para defender os seus produtos. A Talgo, fabricante do comboio acidentado, e a associação temporária de empresas (Thales, Dimetronic-Siemens, Cobra e Antalis) que instalou o sistema de sinalização e de segurança do eixo Ourense-Santiago, optaram pelo mutismo, recusando-se a prestar esclarecimentos na investigação judicial em curso.
Se as averiguações se prolongarem, esse silêncio pode prejudicar seriamente a adjudicação de contratos internacionais. Só a projetada via São Paulo-Rio de janeiro envolve um bolo de 12.000 milhões de euros, que poderá escapar-se se, devido ao trágico acidente, subsistir a versão de que a alta velocidade espanhola não é segura. Esse nervosismo apoderou-se das autoridades, ao ponto de o presidente do Governo da Galiza, Alberto Núñez Feijóo, ter chegado a sugerir que existem "interesses económicos" de outros países, que pretenderiam desprestigiar o sistema de segurança, tendo em vista futuros concursos públicos.
Além disso, o AVE não é apenas uma questão económica. É também uma bandeira política. Os 2 principais partidos – o PP e o PSOE – usaram-na como arma eleitoral, inclusive dando maior destaque ao AVE do que a domínios mais transcendentes como a educação e a saúde. Como explicar de outro modo o facto de José María Aznar e José Luis Rodríguez Zapatero só terem convergido quanto ao plano de ligar todas as capitais de província por comboios de alta velocidade? Inclusivamente, o último plano de infraestruturas (PITVI), atribui ao AVE, até 2024 e no meio da maior recessão da história, 25.000 milhões de euros – 6.000 milhões mais do que a construção de autoestradas.
4.512 milhões de euros de investimento
Os fabricantes de material ferroviário espanhóis faturaram 4.800 milhões de euros em 2012, dos quais exportaram 2.800 milhões, cerca de 21% mais do que no ano anterior. Depois da indústria química de produtos orgânicos, foi o setor cujas vendas no exterior mais cresceram. Ao contrário de outros setores, que deslocalizaram a sua produção para países onde os salários são baixos, a indústria ferroviária mantém uma forte presença fabril, dando emprego a 18.000 trabalhadores.
A Espanha é o país do AVE, a marca comercial da Renfe mas que se transformou num termo genérico para designar toda a alta velocidade. Um total de 3.100 quilómetros em serviço, face a uma rede convencional de 11.000 quilómetros que serve 60% da população.
O AVE é muito rápido mas custa imenso dinheiro. Desde que o Governo de Felipe González decidiu apostar no troço Madrid-Sevilha, a alta velocidade devorou um investimento de 4.512 milhões de euros. Esse investimento sai dos impostos e não foi recuperado através da venda de bilhetes, que, por conseguinte, estão a ser altamente subvencionados.
Por isso, outros países, como a França, abandonaram os seus projetos de alta velocidade. Depois de ter recebido o chamado relatório Duron, o Presidente francês, François Hollande, decidiu apostar nas linhas convencionais, regionais e de proximidade, em detrimento dos projetos previstos de alta velocidade (entre os quais o da ligação à Península Ibérica), devido à sua "reduzida rentabilidade social". O Governo português também renunciou definitivamente da ligação a Espanha em alta velocidade. Pelo contrário, o Executivo de Mariano Rajoy, continua a seguir o caminho traçado pelo anterior, de José Luis Rodríguez Zapatero, ao mesmo tempo que preparava um plano de encerramento de linhas de longa e média distância não rentáveis (como se o AVE o fosse).
Segurança - Cabe aos operadores "fixar limites"
"Sem controlo das condições de segurança, a alta velocidade está condenada", afirma a Slate. Ora, a Espanha não controlava manifestamente essas condições, apesar de estas existirem a nível europeu, através do ERTMS (European Rail Traffic Management System [Sistema Europeu de Gestão do Tráfego Ferroviário]), que permite controlar as velocidades, através da troca de informação entre a base e os comboios.
Contudo, a gestão da segurança não pode ser uma opção: é um imperativo, tal como nos setores nuclear ou aéreo, sublinha este site de informação francês:
Com a alta velocidade, a formação do pessoal de condução dos comboios deve ser próxima da formação dada aos pilotos do transporte aéreo, de modo a não deixar absolutamente nenhum espaço a iniciativas individuais, que não respeitem os procedimentos.
Sem dúvida que "é possível que a aquisição dessa cultura seja mais lenta do que o aumento da velocidade em si", salienta a Slate. Mas compete aos operadores "saber fixar limites" que tenham em conta as suas capacidades para controlar e gerir tanto a técnica como os homens.
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