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domingo, 11 de agosto de 2013

Lesar o interesse público, garantir lucros privados…

A crise política continua. Tem rostos concretos, que entram e saem do governo, mas também causas mais profundas.
As causas conjunturais resultam de termos entrado numa fase nova da crise económica e social: as políticas de austeridade passaram a ser vistas pela população como parte do problema, e nunca da solução, mas apesar disso o executivo anuncia novas escaladas de cortes nas despesas públicas que, a serem aplicadas, teriam efeitos absolutamente devastadores. As causas estruturais prendem-se com práticas já antigas: a promiscuidade e o conluio entre os poderes financeiro e político, ou entre áreas mais agressivas do capital e sectores do Estado cada vez mais permeáveis e mais dependentes desse mesmo capital. Com a crise económica e social a aprofundar-se, o uso e abuso destas portas rotativas por parte de gestores financeiros e detentores de cargos políticos, lesando o interesse público e garantindo lucros privados, gera contradições que manterão a crise política, sejam quais forem os seus rostos.
Os episódios mais recentes da crise política estão a ampliar a compreensão de como opera a engenharia neoliberal – apoiando-se na globalização financeira e na captura do Estado pelos seus gestores e produtos, com a ajuda de instituições europeias e internacionais. Esta percepção pública é fundamental para se entender os interesses divergentes em jogo, que nenhuma “salvação nacional” resolveria, e para que se lute por soluções políticas capazes de afrontar as mil e uma formas de extorsão e de opacidade escondidas atrás da obediência servil aos mercados financeiros.
Durante muito tempo, tudo foi feito para que os achássemos abstractos, quase do reino da ficção. A economia real era a outra, a que produzia os bens e produtos necessários aos nosso consumo, circulação, comunicação, etc.. Nos jornais, as páginas de economia vinham no fim, para especialistas, e as notícias sobre produtos financeiros ou variações bolsistas pareciam ainda mais distantes, para o cidadão comum, do que os engarrafamentos em Lisboa ou no Porto diariamente levados por rádios e televisões a pacatas e recônditas aldeias serranas pareceriam aos seus habitantes. Caímos na armadilha da indistinção entre dualismo e dualidade. Como agora sabemos, não estamos perante 2 mundos separados, um “cá” e um “lá”, como no dualismo, mas perante realidades interligadas, dualidades, que interagem “aqui” de acordo com interesses e relações de forças.
Laboriosamente construída, esta falta de informação e de transparência foi, e é, uma pedra angular do sistema montado. A economista Sara Rocha mostra isso mesmo no artigo que chamamos à capa nesta edição (“SWAP: quando as empresas públicas vão ao casino”). Ao mesmo tempo que explica o que são estes contratos, que descreve os seus contornos mais ou menos tóxicos e que alerta para a sua dimensão e previsíveis perdas para o erário público – em consequência de negócios, altamente lesivos, celebrados por instituições financeiras e do sector empresarial do Estado –, a autora mostra como estas engenharias foram montadas no contexto da União Europeia, logo com a obrigação de cumprimento dos critérios de Maastricht. Os processos de desorçamentação, subfinanciamento crónico e défices crescentes só pioraram com a falta de instrumentos de política económica e monetária imposta pela zona euro e, mais recentemente, com a imposição de políticas austeritárias no quadro do empréstimo da Troika (Banco Central Europeu, Fundo Europeu de Estabilização Financeira e Fundo Monetário Internacional).
É aqui que o círculo se fecha. Por causa da inter-relação umbilical entre todos estes poderes e escalas de actuação na origem da crise, o conhecimento dos vários “casos SWAP”, tal como o das ruinosas parcerias público-privadas (PPP), são centrais para a compreensão do terramoto que nos atingiu. De facto, não há dinheiro para tudo. As escolhas políticas têm privilegiado um sistema financeiro que vive acima das nossas possibilidades. Hoje, quando uma comissão de inquérito parlamentar investiga as responsabilidades de Maria Luís Albuquerque, agora ministra das Finanças, em SWAP tóxicos – como directora financeira da REFER e como secretária do Tesouro no ministério de Victor Gaspar –, e ficamos a saber que as perdas de 1.500 milhões de euros que vinham do governo anterior já haviam duplicado antes mesmo de ela chegar a ministra, não precisamos de esperar pelas conclusões da comissão para perceber, independentemente de mentiras e ocultações, de que números estamos a falar: já não são números enormes mas difíceis de apreender; são facilmente comparáveis com o corte de 4.700 milhões de euros que estes mesmos governantes nos querem impor. De um lado, 3.000 milhões de euros generosamente oferecidos aos bancos; do outro, dezenas de milhares de despedimentos na função pública, mais diminuições de salários já no limite da sobrevivência e brutais cortes nas pensões (10% ou mais, pasme-se, a somar aos outros cortes e até nas pensões já em vigor, o que parece absolutamente inconstitucional).
Mais ainda, o governo recompensa com promoções, recrutamentos e contratações os antigos gestores das instituições financeiras, em particular na decisiva equipa das Finanças, assegurando que continuaremos a ter, interna e externamente, a negociar como representantes do povo português quem contra ele age (tal como na Grécia). A este título, é muito útil a leitura da investigação do jornalista Paulo Pena na revista “Visão” que levou, para já, à demissão do secretário de Estado do Tesouro Joaquim Pais Jorge, “O governante que quis vender swaps tóxicos ao Estado”, para mascarar as contas públicas, quando era director do Citibank Coverage Portugal, como titula a peça (1 de Agosto de 2013). Este fora escolhido para substituir Maria Luís Albuquerque, a mesma que, segundo a investigação da “Visão”, também contratou, para analisar os SWAP das empresas públicas, a consultora Stormharbour, agora dirigida pelo outro proponente ao governo dos referidos SWAP tóxicos, Paulo Gray, então director-executivo para Portugal do Citi.
É inegável que, quando tentam esconder as suas responsabilidades, estes elementos caem muitas vezes em “inconsistências problemáticas”. Habituados a construir as suas próprias regras e a viver acima de qualquer escrutínio democrático, confundem-se e esquecem que a sua capacidade enganatória não resulta de os demais serem pouco inteligentes. Mas deve reconhecer-se que em toda esta tragédia há também uma impressionante consistência. A engrenagem está bem montada e sabe proteger-se. Não foi também este governo que entregou ao banco J.P Morgan, que quase foi a tribunal no caso dos SWAP, a assessoria da privatização dos CTT – Correios de Portugal, um dos maiores crimes dos últimos tempos, quando é uma empresa pública lucrativa e das maiores responsáveis pela coesão social e territorial do país?
A muito breve prazo, e sobretudo quando se está na iminência de um 2.º resgate, Portugal precisa de reverter o rumo austeritário, de criar emprego com direitos, de proteger o Estado social e a administração pública, e de ser representado por quem seja capaz de enfrentar os credores financeiros com coragem e defendendo os interesses da maioria da população. A urgente reestruturação da dívida pública que estes protagonistas e interesses poderiam desencadear nunca será neste sentido (ver, nesta edição, o artigo de Eugénia Pires). Temos, por isso, de denunciar todas as “inconsistências” destes protagonistas, mas sem esquecer que tão ou mais tóxicas são as suas consistências. Que neste período de merecido descanso revigoremos as forças para as combater.

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