Mais de um 1.000.000 de pessoas de todas as idades saíram à rua, a 2 de março, para exigir o fim da austeridade, num descontentamento crescente que poderá alterar o sistema político em vigor desde a queda da ditadura.
Afinal o 15 de Setembro não foi um episódio. Afinal, não se resumia tudo à Taxa Social Única, a que se seguiu o massacre fiscal. Afinal, uma parte muito expressiva de portugueses não está à espera dos humores do CDS, que o Presidente da República acorde do seu sono profundo ou que a chamada oposição interna do PSD ache que chegou a sua hora. Afinal, as pessoas foram para a rua no meio de uma avaliação da troika mostrar que não são o "povo bom" que um dos seus burocratas acreditava aqui viver.
As manifestações do 2 de março não foram manifestações antipolíticos, apesar da evidente antipatia que toda a classe política parece hoje merecer. Foram manifestações mais tristes e desalentadas do que as de Setembro. Mas não foram, ainda, manifestações desesperadas. Foram manifestações com conteúdo político e, em toda a sua simbologia, enquadradas por sentimentos democráticos. E isso é, tendo em conta a situação social que vivemos e o bloqueio institucional que presenciamos, extraordinário. Talvez apenas explicável pelo facto de a nossa democracia ser relativamente jovem.
Disse "ainda" porque, se a oposição não conseguir dar a esta revolta uma resposta, construindo uma alternativa credível - e não apenas preparando a alternância ou tentando capitalizar apoio para os próximas eleições -, o próximo momento pode ser bem diferente. Acredito que se no próximo ano surgisse qualquer coisa no espectro eleitoral capaz de entusiasmar ou prender a atenção das pessoas teria um resultado surpreendente. E que essa coisa pode ser boa mas é mais provável que seja inconsistente. Ou até politicamente perigosa.
Olhando para as manifestações de sábado, uma coisa salta à vista: a sua composição etária. Sendo transversal e longe de ter sido uma manifestação de velhos, notou-se, no entanto, mais do que a 15 de Setembro, a presença de muitos reformados. Neles concentram-se todos os problemas. O problema de terem nascido e crescido num País social, económica e culturalmente atrasado. E de carregarem, mais do que todos os outros, o fardo desse atraso. As reformas miseráveis que grande parte deles recebe, como prova esmagadora de que a ideia em que Passos acredita, e em que quer que o País acredite, de que temos um Estado Social demasiado generoso, só pode vir de uma cabeça de quem não conhece o País fora das sedes partidárias e dos escritórios das empresas dos amigos. As dificuldades dos filhos, incapazes de, hoje, garantirem a estabilidade económica das suas famílias.
Uma das coisas que mais se falou no sábado foi dos filhos que emigravam, que estavam desempregados, que estavam desesperados. E a falta de perspectivas dos netos. Numa sociedade como a portuguesa, onde a família é uma espécie de Estado Social complementar (ou mesmo principal), os velhos acumulam o sofrimento de todas as gerações. E são, eles próprios, os mais sacrificados entre os sacrificados.
Muitos dos reformados que no sábado foram para a rua participaram na sua primeira manifestação de sempre. Ou seja, passaram pela ditadura, pelo PREC e por toda a democracia sem usarem desse direito. E só agora, com mais de 60 anos de vida e quase 40 de democracia, é que se sentiram empurrados para a rua. Não se trata, por isso, de um sentimento passageiro ou que dependa de cada momento mediático. Foi, aliás, esta convicção que me fez estranhar que tantos achassem que a simulação de ida aos mercados tinha dado um novo fôlego ao governo. Portugal não é o País mediático. Não ziguezagueia tão depressa entre a depressão e a euforia. Porque as dificuldades sociais são bem mais lentas, quotidianas e repetitivas do que os ciclos dos telejornais. E muitíssimo mais profundas nos seus efeitos.
Num País envelhecido, os reformados são quem decide quem governa. E têm sido a base eleitoral fundamental do PSD. Sem eles, a direita não ganha eleições. Se Pedro Passos Coelho conseguir cumprir o seu mandato até ao fim essa pode ser a maior tragédia para o PSD. Viverá a sua "pasokização" (os socialistas do PASOK eram o principal pilar do sistema partidário grego e acabaram, nas últimas eleições, com 13%). Que será para durar.
Vivemos um momento de revolta pacífica e que ainda se enquadra no sistema político, tal como o conhecemos hoje. Mas ele está na sua fase decadente. Se o mundo político teimar em não responder ao País, coisas imprevisíveis acontecerão. Penso (ou pelo menos espero) que acontecerão no espaço da democracia e não a pondo em causa. Mas tudo pode mudar com mais 2 anos de austeridade e miséria. Na contestação social, já mudou muito. Ela já não é apenas corporizada - nem sequer já é hegemonizada - pelas estruturas sindicais e partidárias. Não sei se isso é bom ou mau. É assim.
Ouvi, na televisão, Ricardo Costa prever que este governo levará o seu mandato até ao fim. Se a sua profecia estiver correta, as legislativas de 2011 podem ter sido as últimas de um ciclo político nascido em 1976. Outro ciclo poderá nascer e é impossível saber em que cenário se fará política em 2015. Porque, mesmo que pensemos o contrário, não somos assim tão diferentes dos gregos e dos italianos. E não estou a desenhar cenários pré-insurrecionais com que alguns continuam a sonhar. Estou a pensar em bloqueios políticos como os que a Itália vive hoje.
Se a oposição continuar a não conseguir corporizar uma alternativa credível e o principal partido da direita portuguesa entrar em desagregação, os primeiros a aproveitar este momento, sejam sérios ou populistas, comediantes ou estadistas, poderão causar um terramoto político. Porque o terramoto social, esse, já está a acontecer. Sem que, aparentemente, as instituições e os partidos reajam a isso.
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