De Gaspar a Bruxelas, todos parecem crer que há uma dose de caridade nas prestações que o Estado dá aos cidadãos, no dinheiro que a Comunidade Europeia distribui aos países-membros, no debate sobre o papel do Estado na sociedade. As boas notícias vêm da boca de Pedro J. Ramírez, diretor do El Mundo, sobre o futuro dos jornais.
André Macedo
1. O orçamento da UE não é caridade
O argumento mais fantástico que ouvi para justificar a redução da fatia portuguesa no orçamento Europeu é a seguinte: se não tivéssemos recebido tantos euros nos últimos anos, talvez não tivéssemos gasto tanto e tão mal. A premissa deste raciocínio parte da seguinte ideia: como as transferências da UE são, em grande medida, comparticipações - a UE só desembolsa se houver dinheiro público e privado à mistura -, então o ideal era ter havido menos financiamento. É assustadora a menorização de Portugal inerente a esta tese. O paternalismo (de portugueses sobre portugueses) chega a ser chocante. Parece o pai que diz ao filho: vou guardar aqui no meu bolso a tua mesada porque não a sabes gastar.
Ponto um - o financiamento comunitário não é mesada nem esmola, é uma transferência de riqueza que tem contrapartidas (o mercado comum) e uma lógica: a UE, que traz vantagens económicas e políticas a todos, implica que os mais ricos cofinanciem os mais pobres durante certo período de tempo. No fim, o bloco ficará mais forte ou então o projeto falha. A crise está a expor a dolorosa mediocridade lusitana.
Ponto final: O orçamento da UE não é esmola nem direito, é parte do cimento da construção europeia.
2. O Estado social não é caridade
Talvez nem fosse necessário sublinhar o que escrevi em cima - que o orçamento da UE não é esmola nem mesada -, já que me parece uma ideia, digamos, evidente. Mas nos tempos atuais, tudo, até o mais básico, parece posto em causa. O miserabilismo tem estas consequências. É também este o caso do Estado social. Perante a crise que vivemos, a reforma deste poderoso mecanismo de desenvolvimento tornou-se inevitável. Não é um exotismo português. As crises financeiras não deixam alternativa se não olhar para as contas e para todos os programas, procurando corrigir e aparar o que não funciona ou funciona mal. Todos os países europeus fizeram e voltarão a fazer este caminho. Faz parte da boa gestão do sistema. Depois de um aumento permanente dos custos, é tempo de alguma contenção. O que não significa cortes a eito. O Estado social não é caridade. É um investimento partilhado por todos para evitar que as contingências sociais (pobreza, doença, desemprego e velhice) encurralem as pessoas e, a prazo, o país. É por isso um investimento essencial nesta parceria e empreitada comum.
Ponto final: Olhar para o Estado social como um custo é como ver o orçamento da UE só como custo.
3. O apoio às mães não é caridade
Na verdade, o Estado social deveria chamar-se Estado social de investimento, como defende Anthony Giddens, porque não deve limitar-se a ser uma rede mínima de proteção contra a pobreza ou a velhice, mas antes um poderoso mecanismo de investimento que não só ajuda as pessoas a não ficarem encurraladas como acaba por criar países mais competitivos e menos dependentes da assistência social. Explico-me: se eu for ao médico e ele me der uma aspirina em vez de me curar, eu voltarei ao hospital em piores condições e ficarei mais caro ao Estado. Ora bem, se o Estado não criar mecanismos para estimular a natalidade ou financiar os períodos de gravidez ou não criar infantários... tudo isso afetará a prazo as pensões: menos filhos, menos população ativa, menos descontos, rutura. Há outros efeitos. Por exemplo, se as mulheres decidirem, ainda assim, sacrificar a profissão para ter filhos (já que o Estado desinveste na rede de ajuda) isso aumenta o risco de pobreza das famílias em caso de desemprego do marido ou de divórcio. De novo, a lógica é a mesma: a poupança inicial transforma-se num custo muito, muito maior.
Ponto final: Cortar mal no Estado social pode sair mais caro.
4. O debate aberto não é caridade
A forma inábil como Passos Coelho colocou a necessidade de reformar o Estado social tem um problema imediato: cria um bloqueio à mudança. O governo talvez ache que é o primeiro executivo do mundo a enfrentar este desafio, mas está enganado. A Europa assistiu nos últimos 30 anos a várias abordagens e tentativas. Convinha aprender alguma coisa com elas e ver, por exemplo, que Thatcher e até Reagan não conseguiram grandes coisas porque assustaram à partida os eleitores. O Estado social é bom, mas cria vícios e dependências. O status quo é poderoso e tem tendência a impor-se. Apesar do tempo perdido, há aqui uma oportunidade para reformar o sistema, mas isso passa por apresentar uma visão não apenas quantitativa (vamos cortar 4 mil milhões), mas qualitativa do problema (que não deixa de trazer poupança). A ideia deve ser racionalizar, não racionar. A ideia deve ser adaptar os mecanismos do Estado social à situação atual e ao que aí vem, promovendo novos princípios: mais concorrência entre fornecedores (e mais fiscalização) e mais responsabilização entre os destinatários das políticas sociais. O que está em causa é o equilíbrio deste contrato social que nos une, promove e defende. A velha receita tem problemas. O jornalista Bruno Faria Lopes citava ontem no i um estudo em que fica demonstrado que só 31% das pessoas que vivem em agregados familiares recebendo pensões mínimas são realmente pobres. Ou seja, há trabalho a fazer na perceção das ideias e das soluções. Fazer tábua rasa impede a mudança.
Ponto final: O governo assustou as pessoas. Não havia pior maneira de começar a reforma do Estado social.
5. Os jornais não precisam de caridade
As manifestações de jornalistas (como as da Lusa e do Público, recentemente) têm em mim um efeito melancólico. Não me fazem sentir mais forte ou mais acompanhado. Fazem-me sentir sozinho. Parece que faço parte de uma indústria a definhar. Foi a pensar nisso que fui a Madrid falar com Pedro J. Ramírez, diretor do El Mundo. Pedro J. foi meu publisher quando fui diretor do Diário Económico (que pertencia à Recoletos) e por isso sabia que não ia ouvir mais do mesmo. Saí do encontro mais otimista, embora não aos saltos. Não acho que venham aí facilidades, mas fiquei com a certeza de que há um caminho e que as dúvidas quanto ao modelo de negócio são muito menores do que se insiste em fazer crer. Resumo a ideia: a informação grátis na web tem os dias contados, o papel tem os dias contados, os tablets e smartphones (cada vez mais baratos e bons) são o novo paradigma e, nesse ambiente, pagar não é um delírio, faz parte das regras do jogo, embora com uma diferença - sem custos industriais e de distribuição, o negócio é sustentável. E mais: a essência dos jornais não é o papel; a essência é a qualidade da informação (leia a entrevista aqui).
Ponto final: Vem aí a época de ouro dos jornais, diz Ramírez.
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