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sábado, 21 de janeiro de 2012

O ENIGMA DA ESFINGE…

Das duas, uma: ou Aníbal Cavaco Silva teve um lapso de lucidez, ou decidiu expor da forma mais despudorada e obscena o enorme desprezo e falta de respeito que tem pelos seus concidadãos.
Nuno Saraiva
Vamos, pois, aos factos. Abordado ontem por jornalistas no Porto sobre o facto de, enquanto reformado do Banco de Portugal, receber subsídio de férias e de Natal, o Presidente da República decidiu embaraçar-se primeiro e responder depois.
Disse Cavaco, cito de cor, que os 1.300 euros mensais (líquidos?) que recebe da Caixa Geral de Aposentações, para a qual descontou mais de 40 anos, "ouviu bem? 1.300 euros", sublinhou, "quase de certeza não vão dar para pagar as minhas despesas".
Antes de mais, a pergunta era ao pensionista do Banco de Portugal e não ao reformado da Caixa Geral de Aposentações, como, num exercício de "chico espertice" tipicamente lusitano, o Presidente da República quis deliberadamente conduzir a resposta, omitindo aquilo que, nem 2 horas depois, lhe caiu em cima: a declaração de rendimentos entregue a 14 de dezembro de 2010 no Tribunal Constitucional, aquando da sua recandidatura à Presidência da República, em que publicita como é de lei os euro140.601,81 auferidos anualmente em pensões.
Mas, ultrapassado este pormenor, atenhamo-nos ao essencial. Num país em que o número de desempregados ultrapassa os 600.000, em que o salário médio líquido não chega aos 800 euros, em que o número de pensionistas que recebem abaixo do ordenado mínimo nacional ultrapassa o 1.000.000 de portugueses, é no mínimo aviltante ouvir um Presidente da República dizer que os 1.300 euros mensais - mesmo que esta seja apenas uma pequena parte do bolo total legitimamente auferido - que recebe da Caixa Geral de Aposentações - "ouviu bem? 1300 euros" - "quase de certeza não vão dar para pagar as minhas despesas".
E mesmo que fosse total e não parcial a paupérrima soma de 1.300 euros mensais de que se queixa Cavaco Silva, olhemos substantivamente para a realidade. Foi na campanha eleitoral das últimas eleições presidenciais que, interpelado por uma pensionista de Penafiel, o candidato deu o exemplo de Maria, sua mulher, cuja reforma "não chega aos 800 euros". Não querendo de maneira alguma intrometer-me na vida privada do cidadão Aníbal Cavaco Silva, é licito fazer as contas, parciais é certo, e perguntar: quantos casais de reformados em Portugal se podem dar ao luxo de viver com 2000 euros (líquidos?) por mês? Aliás, em abono do rigor, neste caso estamos a falar de mais de 10.000 euros mensais.
É certo que Cavaco Silva abdicou do salário de Presidente da República, optando por uma espécie de trabalho pro bono em Belém e pelo pagamento das pensões que, somadas, são superiores ao ordenado presidencial. Porém, fê-lo não para dar o exemplo, mas porque a lei passou a impedi-lo de acumular pensões públicas com a remuneração do desempenho de funções no Estado. Esta alteração legal deu-se pelas circunstâncias difíceis em que o País já então se encontrava. Mas Cavaco Silva, como político profissional que é, soube capitalizar a seu favor esta mudança e, para a opinião pública, passou a imagem de que a abdicação tinha sido voluntária. Tudo seria mais claro se, sem perder o direito futuro às pensões para as quais descontou, tivesse optado pela sua suspensão e por receber o ordenado da função que atualmente desempenha.
A um Presidente da República exige-se sempre, mas sobretudo no contexto social que atravessamos, seriedade intelectual, sentido da responsabilidade, capacidade de liderança, de mobilização e de dar o exemplo, e sensibilidade social. Queixar-se em público desta forma, ainda para mais omitindo voluntariamente parte da verdade, é insultuoso para todo um país em dificuldades.
Ainda bem que, em democracia, podemos escrutinar os rendimentos dos titulares de cargos públicos. Ainda bem que, apesar de ele não o ter dito, temos acesso ao total das remunerações auferidas pelo cidadão Aníbal Cavaco Silva. Não por despeito, cobiça ou qualquer espécie de voyeurismo barato. Apenas porque não há nada de pior no ser humano do que o miserabilismo.

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