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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Vamos agora extrapolar o “Amigo dos Amigos” para os “DDT”?

Todos os 36 arguidos, 34 pessoas e 2 empresas, do processo Face Oculta foram, esta sexta-feira, condenados pelo Tribunal de Aveiro. Os principais arguidos de um dos processos mais mediáticos dos últimos anos foram também todos condenados a penas de prisão efetiva, numa sentença “pouco habitual” em Portugal. 
A leitura do acórdão ocorreu três anos depois da primeira sessão de julgamento e determinou que a pena mais pesada estava destinada para o principal arguido: Manuel Godinho, líder da rede de associação criminosa, foi condenado a 17 anos e 6 meses de prisão efetiva. Mas a sentença à prisão de facto foi também decretada a Armando Vara e José Penedos, com uma pena de 5 anos para cada um. Paulo Penedos viu o juiz decretar-lhe 4 anos de clausura.
Namércio Cunha, um dos principais arguidos a colaborar com a justiça, foi condenado a 1 ano de prisão com pena suspensa.
João Godinho, filho do sucateiro, foi condenado a 2 anos e 3 meses de prisão com pena suspensa. Por fim, Hugo Godinho, sobrinho do principal arguido, foi condenado a 5 anos e 6 meses de prisão.
Leia aqui as restantes condenações.
Para preservar o segredo, os investigadores marcaram mandados de busca com códigos para apanhar os delatores. O que mudou o Face Oculta?
Sílvia Caneco
Numa fase em que os inspectores da Polícia Judiciária e os procuradores do Ministério Público já passavam entre 16 a 20 horas diárias a investigar a rede de influências do empresário das sucatas Manuel Godinho, o processo "três seis dois" (362) era conhecido entre eles, não como Face Oculta, mas como "Amigos dos Amigos". É esse código que ainda consta dos apontamentos de um dos investigadores. Só quando foi preciso nomear a mega-operação de buscas a quadros da Refer, Ren, Galp, BCP ou EDP, nas vésperas do dia 28 de Outubro de 2009, o nome mudou: a equipa teve receio de que "Amigos dos Amigos" fosse associado a um grupo criminoso do Rio de Janeiro e baptizou a operação de Face Oculta também como manifestação de revolta.
O nome, que é também o de um bar de alterne na Barra, simbolizava as faces ocultas no processo e a que nunca conseguiram chegar e também a que estava escondida nas suspeitas de crime de atentado contra o Estado de Direito, alicerçado num plano do executivo de Sócrates para controlar a comunicação social. Nesta data, a esperança dos investigadores era nula: Noronha Nascimento, então presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), já ordenara a destruição das conversas telefónicas a envolver o primeiro-ministro.
Quando a 28 de Outubro o caso salta para a praça pública com a mega-operação de buscas e o sucateiro de Ovar Manuel Godinho é apresentado ao país como estando no centro de uma teia de corrupção e tráfico de influências para favorecer as suas empresas na adjudicação de concursos públicos, já a investigação decorria há mais de um ano e José Sócrates estava na mira da equipa de Aveiro. A preservação do segredo durante um período tão longo, num caso a envolver figuras de grandes empresas públicas e do poder político, é apontada pelos actores judiciários como um dos primeiros pontos que explicam por que o Face Oculta se pode transformar num marco da Justiça. Mesmo quando o caso passou a estar diariamente nas primeiras páginas dos jornais, quem conduzia a investigação desistiu das queixas por violação de segredo de justiça, ao constatar que boa parte do que era publicado, afinal, não constava do processo.
E não foi por acaso que isso aconteceu. Teófilo Santiago, então director da PJ de Aveiro, é aliás conhecido por encontrar técnicas ardilosas para manter as investigações em sigilo. Neste caso, a equipa, antecipando que a operação de buscas daria origem às habituais fugas de informação, criou uma estratégia para poder caçar o delator. Cada mandado de busca entregue a cada um dos visados foi marcado com um símbolo ou código diferente. Na hora em que a RTP divulgou o mandado de busca os investigadores viram o asterisco e descobriram que a fuga tinha partido de Paulo Pereira da Costa, um dos empresários a quem Godinho terá montado um esquema de facturação falsa. A estratégia levou a que o empresário acabasse condenado pela Relação por violação do segredo de Justiça. Desta vez, não havia margem para dúvidas.
As deslocações em alguns dos locais foram tão planeadas que só muito mais tarde foram conhecidas. Os investigadores precisavam de fazer buscas na PT. Paulo Penedos, apanhado em casa, pediu a máxima discrição. Inspectores e juiz de instrução entraram nas instalações da empresa como visitantes. Estratégia semelhante foi usada no BCP: Armando Vara ajudou-os a entrar directamente pela garagem da administração. Estiveram 6 horas no banco mas só muito mais tarde os funcionários souberam.
Quem conhece a investigação aponta ainda outra série de singularidades ao processo. A PJ e os procuradores Carlos Filipe e João Marques Vidal não andaram às avessas. Pelo contrário: todos os dias havia briefings. O processo, apesar da sua dimensão - 130 volumes e 460 apensos - foi todo ele digitalizado. Na fase de instrução, foram montadas 2 salas no DIAP de Aveiro para que os advogados pudessem ouvir as escutas e o próprio juiz de Aveiro, com veia de informático, criou uma plataforma que viria a permitir ouvir centenas de horas de conversas telefónicas em julgamento ao mesmo tempo que plasmas exibiam a sua transcrição.
Procuradores e juízes concordam haver um antes e um depois do Face Oculta: o cidadão comum não conhecia ainda a realidade das sucateiras como incubadoras de fraude fiscal nem estava habituado a processos desta dimensão e com este tipo de arguidos. Nem a ver entrar na sala de audiências como testemunhas ex-administradores de empresas públicas, ex-ministros e ex-presidentes da República. "As cunhas e os amiguismos, todos sabiam que existiam. Mas quantos chegaram a julgamento? Quantas vezes se entendeu que não era só imoral mas também crime?", sugere um procurador do Ministério Público.
A maioria também aplaude a rapidez de um processo em que foram necessárias 188 sessões de julgamento para ouvir 333 testemunhas. Um colectivo dedicado em exclusividade ao caso, sessões de julgamento praticamente diárias e o facto de os procuradores de julgamento serem os mesmos que fizeram a investigação ajudam a explicar o andamento. "Na maior parte destes casos demorar-se-ia 5 anos só na fase da investigação", diz outro magistrado.
Só quem está do lado dos acusados do processo tem outro entendimento. "Vale a pena ser realista. Este processo só tinha 2 pessoas poderosas: José Penedos e Armando Vara. Também não tinha crimes maiores. Tinha sim uma coisa óbvia: a proximidade a José Sócrates", diz Tiago Rodrigues Bastos, advogado de Vara, que entende que o processo deveria ter sido desdobrado para que o julgamento fosse mais rápido e teme que hoje, no tribunal de Aveiro, se "faça justiceirismo": "Este processo vale mais pelo que insinuou e não se provou do que por ele."
Quem é quem
Manuel Godinho - Empresário das sucatas. Dono de, entre outras, a O2 – Tratamento e Limpezas Ambientais e a SCI. Acusado de 60 crimes, entre eles associação criminosa, corrupção activa, burla qualificada e tráfico de influências. E o único que esteve em prisão preventiva, até 28 de Fevereiro de 2011
Armando Vara - Vice-presidente do BCP, antigo administrador da Caixa Geral de Depósitos, ex-ministro adjunto e do Desporto e secretário de Estado da Administração Interna do governo de António Guterres. Ministério Público pede prisão efectiva por 3 crimes de tráfico de influências. Terá recebido 25.000 euros em 2009 das mãos de Manuel Godinho, na casa do sucateiro, em Ovar.
José Penedos - Ex-presidente da Rede Eléctrica Nacional (REN) acusado de 2 crimes de corrupção e 2 de participação económica em negócio. O antigo secretário de Estado da Energia e Defesa de António Guterres foi suspenso de funções depois de o processo se tornar público.
Paulo Penedos - Filho de José Penedos, advogado e ex-dirigente do PS Coimbra. Responde por 1 crime de tráfico de influência.
José António Contradanças - Administrador da IDD (Indústria de Desmilitarização e Defesa), faz parte do universo Empordef, holding das indústrias de defesa portuguesas. Responde por 1 crime de corrupção.
Hugo e João Godinho - João é filho de Manuel Godinho e Hugo sobrinho. Hugo teve de pagar uma caução de 50.000 euros.
José Valentim - Quadro da REFER. Foi pronunciado por 2 crimes: um de associação criminosa e outro de corrupção.
Paiva Nunes - Administrador da EDP Imobiliária. Responde por 3 crimes: 2 de corrupção e 1 de participação económica em negócio.
António Paulo Costa - Quadro da Petróleos de Portugal (Galp) foi pronunciado por 2 crimes: 1 de corrupção e 1 de tráfico de influência.
Fernando Lopes Barreira - Empresário e ex-presidente da extinta Fundação para a Prevenção e Segurança Rodoviária, criada por Armando Vara enquanto ministro. Acusado de 3 crimes de tráfico de influência.
Manuel Guiomar - Quadro da Refer, está suspenso de funções e foi acusado de 3 crimes de corrupção, 4 de burla qualificada e 3 de falsificação.  
Mário Pinho - Chefe da Repartição de Finanças de São João da Madeira. Responde por 2 crimes: 1 de associação criminosa e 1 de corrupção.
Namércio Cunha - Homem de confiança de Manuel Godinho é acusado de 2 crimes: associação criminosa e corrupção.
Carlos Vasconcellos - Quadro da Refer acusado de um crime de corrupção.
Paulo Costa e Manuel Costa - Ambos sucateiros e ambos acusados de crimes de associação criminosa e receptação. Paulo responde por 2 crimes, Manuel por 9. 

Maribel Rodrigues - Secretária de Manuel Godinho. Responde por 3 crimes: burla na forma tentada, associação criminosa e falsificação.

Cronologia
26 de Julho de 2009 - Chegam à PGR as primeiras certidões de conversas entre Vara e Sócrates. Entre Julho e Novembro, PGR recebe mais 10 certidões e 163 CD.
23 de Julho - A apreciação do conteúdo destas certidões é feita por Pinto Monteiro em despacho, um mês depois. “Em cumprimento da lei” – que exige decisão do Supremo –, Pinto Monteiro remete o caso para Noronha Nascimento.
4 de Agosto - Supremo Tribunal de Justiça (STJ) analisa as certidões.
3 de Setembro - STJ manda destruir gravações. Noronha Nascimento declara a nulidade e ordena a destruição de todos os suportes das gravações.
28 de Outubro de 2009 - PJ efectua 30 buscas no âmbito do Face Oculta. Manuel Godinho é detido. Empresas participadas pelo Estado são alvo de buscas da Polícia Judiciária. Quadros da Refer, REN, Galp, BCP e EDP são suspeitos da prática de crimes económicos ligados a um grupo empresarial de Ovar dedicado à venda de sucata. Paulo Penedos é constituído arguido e Manuel Godinho, dono da O2, é detido em Aveiro.
30 de Outubro - Tribunal decreta prisão preventiva de Godinho. José Penedos, presidente da REN, é constituído arguido. Um dia antes, Armando Vara – número 2 do BCP – integra a lista de arguidos no processo. Em nota interna aos colaboradores do banco, afirma estar “inocente”. Em despacho enviado ao procurador-geral distrital de Coimbra, Pinto Monteiro solicita a promoção de diligências para o cumprimento da decisão do presidente do Supremo.
31 de Outubro - Refer refuta pressões de Mário Lino ou Ana Paula Vitorino para demitir a administração da empresa. O ex-ministro das Obras Públicas nega ter sido pressionado por Armando Vara para servir os interesses do empresário de Ovar, Manuel Godinho. “Quem me conhece sabe que não sou influenciável nem influenciado.”
4 de Novembro - Armando Vara pede suspensão do cargo de vice-presidente do BCP. Número de arguidos sobe para 15. Vítor Constâncio, governador do Banco de Portugal, considera a suspensão do mandato de Vara “muito importante”. Os arguidos no processo começam a ser ouvidos no dia seguinte, no DIAP de Aveiro.
5 de Novembro - Paiva Nunes, administrador da EDP Imobiliária, pede a suspensão das funções.
6 de Novembro - O nome de Sócrates surge pela primeira vez associado ao processo publicamente. Primeiro-ministro confirma ter falado, mas não denuncia o teor das conversas. Teixeira dos Santos anuncia que o governo pediu uma auditoria às empresas públicas envolvidas no caso Face Oculta. No dia anterior, Manuel Guiomar, quadro da Refer ouvido em Aveiro, é suspenso de funções na empresa e proibido de qualquer contacto com os restantes suspeitos de envolvimento no processo.
11 de Novembro - Em entrevista à RTP, Noronha Nascimento diz: “O que tem chegado é um pouco aos bochechos. Aos bocadinhos. Não percebo como se pode enviar certidões importantes agora, outra daqui a 15 dias.”
13 de Novembro - Procurador-geral distrital de Coimbra entrega a Pinto Monteiro elementos complementares e mais 5 conversas em que intervém Sócrates.
21 de Novembro - PGR manda arquivar escutas a Sócrates. Pinto Monteiro anuncia ter emitido, nesse dia, despacho em que ordena arquivamento dos documentos, por não haver “elementos probatórios” que justifiquem a instauração de procedimento criminal contra Sócrates. Anuncia que, em qualquer caso, as 5 escutas recebidas mais tarde foram remetidas ao presidente do STJ, para apreciação da validade.
27 de Outubro de 2010 - É deduzida acusação contra 34 pessoas e 2 empresas por crimes de corrupção, burla qualificada, associação criminosa e tráfico de influências.
14 de Março de 2011 - Juiz Carlos Alexandre pronuncia todos os arguidos do Face Oculta.
8 de Novembro de 2011 - Começa o julgamento.
11 de Março de 2014 - MP defende que todos os crimes ficaram provados e, por isso, todos os arguidos devem ser condenados. Para o MP, não restam dúvidas de que o sucateiro Manuel Godinho foi favorecido por empresas públicas em concursos de recolha de resíduos e também não terão sido dados argumentos coerentes para a “longa e farta” lista de presentes entregues por Godinho durante a época natalícia. 

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