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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O direito a gerir o nosso tempo/corpo e a privacidade…

Nós, que podemos ser contactados por telemóvel ou internet 24 horas, 7 dias por semana, estamos a viver no tempo de quem?
Eliane Brum
Há dias atrás, Gabriel Prehn Britto, do blog Gabriel quer viajar, tuitou a seguinte frase: “Precisamos redefinir, com urgência, o significado de URGENTE”. (Caixa alta, na internet, é grito.) “Parece que as pessoas perderam a noção do sentido da palavra”, comentou, quando perguntei por que tinha postado esse protesto/desabafo no Twitter. “Urgente não é mais urgente. Não tem mais significado nenhum.” Referia-se tanto ao urgente usado para anunciar notícias nada urgentes nos sites e nas redes sociais, quanto ao urgente que invade o nosso quotidiano, na forma de procura, tanto da vida pessoal como da profissional. Depois disso, Gabriel passou a postar uns “tuites” provocatórios, do tipo: “Urgente! Acordei” ou “Urgente: hoje é sexta-feira”.
A provocação é muito precisa. Se há algo que se perdeu nesta época em que a tecnologia tornou possível a todos alcançarem todos, a qualquer tempo, é o conceito de urgência. Vivemos ao mesmo tempo o privilégio e a maldição de experimentarmos uma transformação radical e muito, muito rápida no nosso ser/estar no mundo, com grande impacto na nossa relação com todos os outros. Como tudo o que é novo, é previsível que nos atrapalhemos. E nos lambuzemos um pouco, ou até bastante. Nesta nova configuração, parece necessário resgatarmos alguns conceitos, para que o nosso tempo não seja devorado por banalidades como se fosse matéria ordinária. E talvez o mais urgente desses conceitos seja mesmo o da urgência.
Estamos a viver como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para contactar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata. Como se o tempo do “outro” fosse, por direito, também o “meu” tempo. E até como se o corpo do outro fosse o meu corpo, já que posso invadi-lo, simbolicamente, a qualquer momento. Como se os limites entre os corpos tivessem ficado tão fluidos e indefinidos como a comunicação ampliada e potencializada pela tecnologia. Este apossar-se do tempo/corpo do outro pode ser compreendido como uma violência. Mas até certo ponto consensual, na medida em que este que é alcançado se abre/oferece para ser invadido. Torna-se, ao se colocar no modo “online”, um corpo/tempo à disposição. Mas exige o mesmo do outro – e retribui a possessão. Olho por olho, dente por dente. Tempo por tempo.

Como muitos, tenho tentado descobrir qual é a minha medida e quais são os meus limites nesta nova configuração. E passo a contar aqui um pouco desse percurso no quotidiano, assim como do trilhado por outras pessoas, para que o questionamento fique mais claro. Descobri logo que, para mim, o telemóvel é insuportável. Não é possível ser alcançada por qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Estou a ler um livro e, de repente, o mundo me invade, em geral com irrelevâncias, quando não com telemarketing. Estou a escrever e alguém liga para me perguntar algo que poderia ter descoberto sozinho no Google, mas achou mais fácil ligar-me, já que bastava apertar uma tecla do próprio telemóvel. Trabalhei como uma camela e, no meu momento de folga, alguém resolve contactar-me para falar de trabalho, obedecendo às suas próprias necessidades, sem dar a mínima para as minhas. Não, mas não mesmo. Não há chance de eu estar acessível – e disponível – 24 horas por 7 dias, semana após semana.
Me bani do mundo dos telemóveis, fechei essa janela no meu corpo. Mantenho o meu aparelho, mas ele fica desligado, com uma gravação de “não uso telemóvel, por favor, mande um e-mail”. Levo-o comigo quando saio e quase sempre que viajo. Se precisar chamar um táxi em algum momento ou tiver uma urgência real, ligo o telemóvel e faço uma chamada. Foi o modo que encontrei de usar a tecnologia sem ser usada por ela.
A minha decisão não foi bem recebida pelas pessoas do mundo do trabalho, em geral, nem mesmo pela maior parte dos amigos e da família. Descobri que, ao não me colocar 24 horas disponível, as pessoas se sentiam pessoalmente rejeitadas. Mas não apenas isso: elas sentiam-se lesadas no seu suposto direito a tomar o meu tempo na hora que bem entendessem, com ou sem necessidade, como se não devesse existir nenhum limite ao seu desejo. Algumas declararam-se ofendidas. Por que não posso falar com você na hora que eu quiser? Por que o seu tempo não é um pouco meu? E se eu precisar falar com você com urgência? Se for urgência real – e quase nunca é – há outras formas de me alcançar.
Percebi também que, em geral, as pessoas sentem não só uma obrigação de estar disponíveis, mas também um gozo. Talvez mais gozo do que obrigação. É o que explica a cena corriqueira de ver as pessoas a atender o telemóvel nos lugares mais absurdos (inclusive no quarto de banho...). Nem vou falar do cinema, que aí deveria ser caso de polícia. Mas em aulas de todos os tipos, em restaurantes e bares, em encontros íntimos ou mesmo profissionais. É o gozo de se considerar imprescindível. Como se o mundo e todos os outros não conseguissem viver sem a sua omnipresença. Se não atenderem o telemóvel, se não forem encontradas de imediato, se não derem uma resposta imediata, poderão acontecer catástrofes.
O telemóvel ligado funciona como uma autoafirmação de importância. Tipo: o mundo (a empresa/a família/ o namorado/ o filho/ a esposa/ a empregada/ o patrão/os funcionários etc.) não sobrevive sem mim. A pessoa stressa-se, reclama do assédio, mas não desliga o telemóvel por nada. Desligar o telemóvel e descobrir que o planeta continua a girar pode ser um risco maior. Nesse sentido, e sem nenhuma ironia, é comovente.
Por outro lado, é um tanto egoísta, já que a pessoa não se coloca por inteiro onde está, numa aula ou no trabalho ou mesmo em casa – nem se dedica por inteiro àquele com quem escolheu estar, num encontro íntimo ou profissional. Está lá – mas apenas parcialmente. Não há como não ter efeito sobre o momento – e sobre o resultado. A pessoa está parcialmente com alguém ou naquela atividade específica, mas também está parcialmente consigo mesma. Ao manter o telemóvel ligado, você pertence ao mundo, a todo mundo e a qualquer um – mas talvez não a si mesmo.
Parece-me descortês estar alguém comigo num restaurante, por exemplo, e interromper a conversa e a comida para atender o telemóvel. Assim como me parece abusivo ser obrigada a aturar os telemóveis das pessoas em redor tocando em todas as modalidades e volumes, invadindo o espaço de todos os outros sem nenhuma consideração. Ou ainda estar num lugar público e ter de ouvir a narração de uma vida privada, que não conheço nem quero conhecer. Será que isso é realmente necessário? Será que uma pessoa não pode ausentar-se, ficar incomunicável, por algumas horas? Será que temos o direito de invadir o corpo/tempo dos outros direta ou indiretamente? Será que há tantas urgências assim? Como é que trabalhávamos e amávamos antes, então?
Bem, eu não sou imprescindível a todo mundo e tenho a certeza de que os dias nascem e morrem sem mim. As emergências reais são poucas, ainda bem, e para estas há forma de me encontrar. Logo, posso ficar sem telemóvel. Mas tive de me esforçar para que as pessoas entendessem que não é uma rejeição ou uma modalidade de misantropia, apenas uma escolha. Para mim, é uma maneira de definir as fronteiras simbólicas do meu corpo, de territorializar o que sou eu e o que é o outro, e de estabelecer limites – o que me parece fundamental em qualquer vida.
Tentei manter um telefone fixo, com o número restrito às pessoas fundamentais no campo dos afetos e também no profissional. Mas o telemarketing não permitiu. É impressionante como as empresas de todo o tipo – e agora até os candidatos numa eleição – acham que têm o direito de nos invadir a qualquer hora. Considero uma violência receber uma ligação ou gravação dessas dentro de casa, à minha revelia. E parece que sempre encontram um jeito de burlar as nossas tentativas de barrar esse tipo de assédio. Assim, também botei uma gravação no telefone fixo – e virou um telefone só para recados, porque foi a única maneira que encontrei de impedir o abuso do mercado.
A minha principal forma de comunicação é hoje o e-mail, porque sou eu que escolho a hora de contactá-lo. E, ao procurar alguém, seja por motivo profissional ou pessoal, tenho a certeza de não estar invadindo o seu quotidiano em hora imprópria. É assim que combino encontros e entrevistas ao vivo, que são os que eu prefiro. Ou marco horário para conversas por Skype com quem está noutra cidade ou país. E quando viajo ou preciso desaparecer do mundo, para ficar só comigo mesma, ou me dedicar a um outro por completo, ou à escrita de um livro, basta deixar uma mensagem automática. Tento me disciplinar para contactar o Twitter, que para mim é hoje uma ferramenta fundamental para dar, receber e principalmente compartilhar informações, em horários específicos. E desligo o computador antes de dormir, como gesto simbólico que diz: fechei a porta.
Uma amiga foi assaltada por uma insónia persistente. Ao despertar, na madrugada, tinha a sensação de que o mundo se movia em ritmo veloz enquanto ela dormia. Parecia que estava a perder algo importante, que ficaria para trás. E parecia até que estava morta para o mundo, “offline”. Às vezes não resistia e saía da cama para caminhar até ao escritório, onde ficava o computador, e entrar no Facebook e no Twitter, dar uma olhadela nos sites de notícias, manter-se desperta, presente e alinhada com o mundo que não parava, correndo atrás dele. Depois, passou a deixar o notebook ao lado da cama e já contactava a internet dali mesmo, apesar dos protestos do marido.
Quando a insónia já estava a comprometer seriamente os seus dias, procurou um psiquiatra em busca de remédio. O médico perguntou bastante sobre seus hábitos, e ela descobriu que o pesadelo que a deixava insone era aquele computador ligado, com o mundo a acontecer dentro dele num ritmo que ela não podia acompanhar nem mesmo mantendo-se acordada durante 24 horas. Bastou desligar o computador a cada noite para que passasse a despertar menos vezes e menos sobressaltada nas madrugadas. Aos poucos, voltou a dormir bem. O mundo estava onde devia estar – e ela também, na cama. Estava offline, mas viva.
Conheço pessoas que colocam uma fita adesiva sobre a câmara do computador. Foi o meio encontrado para se protegerem da sensação de que estavam sendo espiadas/monitoradas 24 horas por dia por algum tipo de “Big Brother” – no sentido do 1984, do George Orwell (não no do reality show das TVs). A câmara tinha-se tornado uma espécie de olho do mundo, que podia abrir as pálpebras mesmo à revelia, como nas histórias fantásticas e nos filmes de terror.
Conto as minhas (des)venturas, assim como as de outros, apenas porque acho que não somos os únicos a ter esse tipo de inquietação. É um momento histórico bem estratégico de redefinição de limites, de territórios e também de conceitos. Que tipo de efeito terá sobre as novas gerações a ideia de que não há limites para alcançar, ocupar e consumir o tempo/corpo dos pais e amigos e mesmo de desconhecidos? Assim como não há limites para ter o próprio tempo/corpo alcançado, ocupado e consumido?
Ainda acho que o gozo de ser imprescindível a quase todos os outros – no sentido de não poder ausentar-se ou calar-se – e também de ser onipotente – no sentido de alcançar, a qualquer hora, o corpo de todos os outros – é maior do que o incómodo. Mas, talvez só aparentemente, na medida em que é possível que não estejamos conseguindo avaliar o estrago que esses corpos/tempos violáveis e violados possam estar a causar na nossa subjetividade – e mesmo na nossa capacidade criativa e criadora.
A grande perda é que, ao considerar-se tudo urgente, nada mais é urgente. Perde-se o sentido do que é prioritário em todas as dimensões do quotidiano. E viver é, de certo modo, um constante interrogar-se sobre o que é importante para cada um. Ou, dito de outro modo, uma constante interrogação sobre para quem e para o quê damos o nosso tempo, já que tempo não é dinheiro, mas algo tremendamente mais valioso. Como disse o professor Antonio Candido, “o tempo é o tecido das nossas vidas”.
Esta oferta 24 X 7 do nosso corpo simbólico para todos os outros – e às vezes para qualquer um – pode ter um efeito bem devastador sobre a nossa existência. Um que nem sequer é escutado, dado tanto barulho que há. Falamos e ouvimos muito, mas de facto não sabemos se dizemos algo e se escutamos algo. Ou se é apenas ruído para preencher um vazio que não pode ser preenchido dessa maneira.
Será que não é este o nosso mal-estar?
Viver no tempo do outro – de todos e de qualquer um – é uma tragédia contemporânea.

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