Meira Soares Presidia à Comissão de Acesso ao Ensino Superior. Sai, não porque discorde das políticas de educação - nem as consegue avaliar, diz, face a tanta preocupação em cortar na despesa - mas porque deixou de confiar no Governo.
Sempre foi "um espírito rebelde" - é ele quem o reconhece. E diz que, por causa disso, não duraria muito tempo num partido, caso se tornasse militante de algum. Virgílio Meira Soares anunciou que não queria continuar a ser presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior (CNAES), cargo que ocupava há 15 anos, porque não queria ter de tratar directamente com um Governo que ataca de "maneira despudorada os que menos recebem". A situação dos aposentados foi especialmente abordada numa "carta aos deputados" divulgada na semana passada. O mais jovem reitor da Universidade de Lisboa (tinha apenas 37 anos quando foi eleito e dirigiu os destinos da instituição durante 12 anos) soma cargos e títulos: foi membro da Comissão de Reforma do Sistema Educativo, secretário de Estado, recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública. Catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa desde 1979, aposentou-se em 2011. Mas continuou a trabalhar na CNAES, sem remuneração, e a participar em comissões de avaliação de instituições superiores em vários países. Tem 64 anos.
Público - Continua a achar "abjectos", como escreveu na sua carta aos deputados, os cortes nas pensões de sobrevivência, mesmo depois de se ter ficado a saber que esses cortes só afectarão quem recebe mais de 2000 euros/mês em pensões?
VMS - São cortes pequenos, comparados com o que se esperava. No entanto, é uma questão de princípio. Diz-se: "Não há dinheiro, tem de se cortar." Eu aceito que haja cortes. Mas, por um lado, que se expliquem esses cortes. E, por outro, tem de haver salvaguardas.
Estas medidas não devem ter efeitos retroactivos?
As pessoas têm de ter confiança no sistema. Mesmo quem ganha mais, e eu estaria aí, tem de saber com o que contar. As pessoas têm as suas vidas organizadas de uma certa maneira. Não se pode dizer: "Daqui a 2 meses a sua pensão vai ser cortada." Choca-me a atitude de não respeitar o contrato. Ou então, tinha de se dar garantias de que isto não vai acontecer outra vez. Amanhã, este Governo ou outro qualquer, vem e diz: "Agora já não é assim, agora o corte é o dobro." Estas medidas avulsas a que estamos a assistir não descansam ninguém. Tenho impressão de que há alguém no Ministério das Finanças que acorda de manhã e diz: "A quem é que vamos cortar hoje?" E sai uma medida. Isto está a ficar uma manta de retalhos, porque não se faz a reforma do Estado. E este tipo de amadorismo não é aceitável, especialmente num momento em que se precisava de muito profissionalismo e de seriedade.
A sua carta aos deputados...
É uma carta aberta...
... recebeu muitos elogios. Mário Soares disse que era um homem de coragem...
A carta é um grito de revolta. E o país não está habituado. O país está habituado a que haja umas pessoas que escrevem uns artigos nos jornais, que depois aparecem naquelas páginas do PÚBLICO, mas depois ninguém lê: os senhores deputados não lêem, os membros do Governo ainda menos, os assessores não ligam. E as outras pessoas dizem que são sempre os mesmos a falar...
A democracia portuguesa sofre do mal da falta da participação cívica diária. A carta foi um acto de cidadania. Mas tinha de ter consequências. E o que digo é que cheguei a um ponto tal de desconfiança neste Governo que eu, que dei sempre tudo, disse: "Sinceramente, se quiserem quem faça este trabalho, paguem a alguém."
Como assim?
Quando me aposentei [como professor catedrático] perdi a gratificação como presidente da CNAES, que eram 1.000 euros brutos. Mas continuei a trabalhar. Em 2011, foi feito um primeiro corte no subsídio de Natal, e continuei a trabalhar gratuitamente. Em 2012, foram-nos cortados os subsídios de férias e de Natal, na totalidade. E continuei a trabalhar gratuitamente. Em 2013, introduziram a contribuição extraordinária de solidariedade e o corte dos 90% de um subsídio (que mais tarde desapareceu porque foi considerado inconstitucional). E eu continuei a trabalhar gratuitamente. Agora, o senhor primeiro-ministro ataca a função pública [com mais cortes salariais] e eu digo: "Não tenho paciência para este Governo, vou-me embora. Chega!" A demissão é a indignação de um cidadão.
Não estou a dizer que me vou embora porque não me pagam. Estou a dizer que este Governo não merece que eu faça isto. Foi isso que expliquei na carta de demissão, que enviei ao Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas [que escolhe os representantes das universidades na CNAES].
E críticas, recebeu?
Não. Tenho recebido o apoio de gente da direita à esquerda. E recebi uma manifestação de apoio total de alguém nomeado pelo PSD para um cargo de confiança política.
E o Governo?
Falei já com um membro do Governo, não digo qual, sobre outras coisas, mas que não me falou da carta. Nem da demissão.
Vivendo a CNAES do orçamento do Ministério da Educação e Ciência (MEC), não seria normal que o MEC lhe fizesse chegar algum comentário?
Que fique claro: não critiquei a política do MEC. Todos os Governos me deram condições para trabalhar. E este inclusivamente. Agora esse é o plano profissional, no plano individual, como cidadão... vade retro. A minha demissão tem a ver com as prioridades e os cortes. Aceitando que os cortes têm de ser feitos, eles têm de ter alguma lógica, têm que ser feitos com muita sensibilidade social, que não tenho visto. Vão sempre aos mesmos. Não se corta nas mais-valias, por exemplo. As pessoas têm direito à dignidade e a ser tratadas de maneira digna.
Diz que o Governo põe os novos contra os velhos...
Quando o primeiro-ministro passa a vida a dizer que os reformados ganham mais do que aquilo que descontaram, sem provar que é assim... Eu também posso dizer que ele ganha de mais. Descontei 40 anos, 30 dos quais no [escalão] máximo...
Já fez as contas ao que perdeu?
Estou a receber por mês menos 600, 700 euros de pensão do que em 2011, que foi quando saí. Sem contar com os cortes do subsídio de Natal e férias num ano e no de Natal no outro...
Na carta diz: "Já não é só incompetência - é estupidez, teimosia, miopia ou má-fé." É o quê?
Não quero acreditar na má-fé. Acho é que há muita incompetência. Como é que se faz uma lei de despedimentos da função pública, desculpe chamar-lhe assim, sabendo que não pode passar no Tribunal Constitucional, porque não há uma justificação objectiva para os despedimentos? Era óbvio que não passava. É um exemplo.
Mas também critica Governos anteriores por terem conduzido o país aqui. Continua a ser militante do PS?
Nunca fui. Essa é uma coisa que se meteu na cabeça das pessoas. Nunca fui e com este meu espírito rebelde saía no mês seguinte. Sempre apoiei o PS - mas isso é outra coisa - até às últimas eleições, em que já estava farto do Sócrates. E pertenci a um Governo do Bloco Central, indicado pelo PS, com o acordo total do ministro de então, João de Deus Pinheiro - éramos amigos. Também aceitei, uma vez, ser o 54.º candidato numa lista do PS, como independente, e fui presidente da Assembleia Municipal de Portalegre, a minha terra natal. Além de ter sempre apoiado o Dr. Mário Soares, que foi sempre uma pessoa que me mereceu respeito e amizade. Já agora: ao escrever a carta que escrevi, não quero ser líder de nada, de nenhuma associação de reformados, nada...
Concorda com o aumento da idade da reforma?
Só não concordo porque o indivíduo que meteu o pedido de reforma em Agosto, aos 64 anos, se calhar para o ano não o deixam reformar-se porque só faz 65. É a história da confiança... Um tipo pensa: "Estou [prestes a reformar-me]". De repente, dizem-lhe: "Não está porque eu já não deixo." O problema é a falta de aplicação gradual das medidas.
Com que idade se aposentou?
Com 61,5. Era o que estava na lei. Comecei a ver que, de cada vez que me aproximava de ter o direito, mo tiravam, e disse: "Ai agora tenho o direito? Não mo tiram mais." E fui-me embora. Se não fosse isso, se calhar ainda continuava a trabalhar na universidade.
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