O Verão de 2013 entra na sua última volta e dele ressalta a aparente indignação dos portugueses com os seus ricos. 2 episódios dominaram a agenda: a expressão “brincar aos pobrezinhos” (e respectivo pedido de desculpas) de Cristina Espírito Santo e a entrevista televisiva de Judite Sousa ao jovem milionário brasileiro luso-descendente Lorenzo Carvalho, que gastou 300.000 euros na festa do seu 22.º aniversário.
João Lopes Marques
Carnaval mediático digno da silly season, a emergência de uma nova retórica de desigualdade, proverbial inveja à portuguesa ou somente frustração incontida provocada pela crise? Das opiniões recolhidas, e os quadrantes são variados, porventura um bocadinho disso tudo.
Terapia de choque
“Não acho que os portugueses odeiem os ricos”, responde o escritor Rui Zink, que prefere dar uso diferente ao verbo odiar. “Acho, sim, que os portugueses odeiam a ideia de voltar a ser pobres e se sentem empurrados para a pobreza, como quando alguém puxa de repente um lado da toalha de mesa.”
Rui Zink, que assume ser hoje muito menos “centrão” do que há meia dúzia de anos, compara a situação a algumas derivas que se seguiram ao colapso da União Soviética. “Há uma radicalização causada pelo facto de estarmos num faroeste, versão miniatura dos anos 90 na Rússia, quando a ‘terapia de choque’ da conversão à economia de mercado empurrou milhões para a morte, a miséria, a humilhação”, sustenta.
Revolução yuppie
O director do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, Rui Bebiano, vai mais atrás. A narrativa sobre os ricos e a riqueza muda com a chegada dos yuppies em meados dos anos 80, quando o enriquecimento rápido e os símbolos de status materiais passam a ser socialmente aceites. O individualismo crescente esvazia o projecto colectivista saído da Revolução dos Cravos.
As mentalidades mudavam. Um certo capitalismo de matriz neoliberal desembarca em Portugal. A proliferação de “revistas cor-de-rosa” e de concursos destinados a “fazer milionários” foram um dos primeiros sintomas.
“No final dos anos 70, uma palavra de ordem da UDP (‘Os ricos que paguem a crise’) e alguma legislação destinada a penalizar quem então exibisse ‘sinais exteriores de riqueza’, mostraram de que forma, após o final do período revolucionário de 1974-1975, se manteve a noção muito aguda de que, apesar da vitória da democracia representativa, as grandes disparidades sociais permaneciam, e de que era de alguma forma ilícito, sobretudo no domínio ético, a ostentação de riqueza”, recorda o historiador. “A própria ideia de lucro, associada à produção de uma riqueza não colectivamente redistribuída, era tomada como negativa ou pelo menos indesejável”, insiste Rui Bebiano.
Da meritocracia
O politólogo João Pereira Coutinho prefere apontar o dedo à ausência de meritocracia. Esta é, segundo o colunista, a mãe de todos os males: “Os portugueses odeiam os ricos porque, ao não vivermos numa sociedade meritocrática, onde é o mérito individual que determina o status económico e social de cada um, há sempre a suspeita, aliás certeira em muitos casos, de que a riqueza foi obtida da pior forma - através da corrupção, do compadrio, etc.”
Pereira Coutinho dá como exemplo os EUA, onde o ódio ao rico se converte numa imitação do rico: “Eu deixaria de odiar o vizinho e passaria a querer ser como ele, com a certeza de que o sistema premiaria o meu esforço.”
“Há em Portugal uma energia típica dos países pobres, a chamada inveja igualitária, o preciso contrário da igualdade enquanto justiça”, reforça o professor de Direito e politólogo José Adelino Maltez. A ausência de igualdade de oportunidades é uma tensão permanente. Por outro lado, apõe Maltez, em encruzilhadas de desespero, “como não há liberais em Portugal”, a sociedade resvala para um catolicismo de matriz salazarenta ou para uma esquerda anticaridadezinha.
“Daí que muitos se sintam órfãos do pai estadão que dá migalhas, em nome de uma dessas ideologias hipócritas que prefere invocar a invasão dos mercados à criação de uma estratégia nacional nos quadros das regras do jogo do capitalismo global e em que estruturalmente nos colocamos”, afirma Adelino Maltez, que é membro assumido da maçonaria.
Neura colectiva
A maré baixa em que o país vive tem dado o seu contributo. E muito, admite Pereira Coutinho. Tamanho ressentimento social é naturalíssimo. “Ajudou a destapar uma classe média que de média pouco tinha: com vidas a crédito, ou sustentada por um Estado falido, uma parte dessa classe média viu abrir-se sob os pés a possibilidade de ‘brincar aos pobrezinhos’ de verdade. Quando estes choques de realidade acontecem, tudo é pretexto para carregar as armas. Os Espírito Santo e o rapaz da festa não passaram de bodes expiatórios para descarregar a neura.”
Também Rui Zink acredita que aqui ninguém odeia pessoalmente ninguém. Lorenzo e Cristina são brincadeiras de Verão. “Não creio que, à excepção de Judite La Rouge, alguém tenha real antipatia por essas pessoas. Fazem-nos rir, e isso é bom. Aliás, já os romanos sabiam que ridendo castigat mores (com o riso se castigam os costumes).”
Demagogia mediática
Mas que responsabilidade têm hoje os media no agendamento e amplificação do fenómeno? Bastante, concorda Joaquim Vieira, presidente do Observatório de Imprensa. É normal que num momento de grave crise as declarações e as atitudes dos ricos estejam sob maior escrutínio. O público está particularmente sensível a temas como a falta de solidariedade e o esbanjamento.
Não obstante, acrescenta Vieira, os media estão a tentar potenciar “o sentimento de inveja por parte de quem não possui o mesmo tipo de fortuna material e que, portanto, está sempre pronto a dar bicadas nos ricos e poderosos”.
O presidente do Observatório de Imprensa alude a uma erva daninha chamada demagogia. “Basta uma pequena parcela de terra fértil para crescer”, sustenta Vieira. Acrescenta: “Claro que muitos jornalistas e órgãos de informação exploram logo estas situações, porque sabem como a opinião pública aprecia consumir matéria relacionada com elas. Basta ver a repercussão que estes casos têm nas redes sociais.”
Pedro Lomba, jurista e secretário de Estado adjunto do ministro-adjunto e do Desenvolvimento Regional, prefere não dissertar sobre o tema devido às suas actuais funções. “A única coisa que posso dizer é que a fase que o país atravessa atiça naturalmente populismos vários, um forte sentimento antipolítica e uma retórica violenta contra os poderosos, contra quem tem poder, ou contra quem achamos que tem poder.”
Rui Bebiano reconhece que o regresso de algum vocabulário destinado a qualificar negativamente os ricos tem por vezes um tom populista. E até pode em alguns casos “relacionar-se com uma linguagem datada, imposta por sectores da esquerda política com dificuldade em se adaptarem a novos figurinos sociais”.
Não obstante, o investigador do Centro de Estudos Sociais acredita que a forma como esta retórica é amiúde apropriada pelas pessoas comuns só demonstra o alastramento de uma certa consciência da desigualdade. Será, pois, que a tão marxista luta de classes ganha novo fôlego em Portugal?
“Só onde há pobres, e sobretudo pobres com a percepção de o serem, os ricos têm todas as razões para se sentirem odiados. Infelizmente, é este o caso”, conclui Rui Bebiano.
Sem comentários:
Enviar um comentário