"As decisões judiciais não são determinadas pelas consequências que possam ter na economia" disse Henriques Gaspar, o novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça na tomada de posse. É uma resposta ao governo e uma manifestação de solidariedade para com os juízes do Tribunal Constitucional.
Paulo Gaião
Henriques Gaspar, presidente do Supremo Tribunal de Justiça |
Toda a intervenção de Gaspar, pela sua elevada qualidade e sustentação, deve, aliás, ser bebida na íntegra. Passos Coelho e Poiares Maduro não a devem perder.
As duas entidades judiciais mais importantes do país não se vergam na aplicação da Constituição e da lei.
Entretanto, o ministro Poiares Maduro diz que sem a reforma do Estado os impostos podem aumentar. Faz chantagem com os tribunais, que são hoje o último reduto contra o atentado aos direitos das pessoas. E trata os cidadãos como objetos da sua ira contra os poderes jurisdicionais. É já uma forma malévola e doentia de governar.
Se o Tribunal Constitucional chumbar novas medidas para a reforma do Estado e o governo aumentar mesmo os impostos, o patamar de ilegitimidade deste executivo atinge um grau insustentável. Vai contra promessas recentes do próprio executivo de que a carga fiscal não aumentaria. Contraria as indicações da troika de não querer mais impostos. E condiciona uma vez mais politicamente Cavaco, que também não quer mais carga fiscal, fazendo dele um autêntico farrapo institucional.
Leia na íntegra a intervenção de Henriques Gaspar, uma análise intelectualmente rica, uma perspetiva rigorosamente política e um retrato denunciatoriamente fiel.
A formalidade que os usos foram impondo à sessão de inauguração de funções do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça encerra um simultâneo de simbólico, de partilha e de substância.
De simbólico, porque são os juízes do Supremo Tribunal de Justiça que, pela lei, aceitam e guardam o juramento de honra no exercício das responsabilidades e deveres do cargo em que, como colégio eleitoral, me quiseram constituir;
De partilha, pela presença de Vossas Excelências, Senhores Convidados, que agradeço vivamente, e que nos dão a generosidade do vosso testemunho qualificado;
De substância, porque este acto significa um juramento solene de dedicação na defesa dos valores da Justiça, em representação da República e em nome do povo. Juramento que assumo na ética do comprometimento.
1. Vivemos num tempo histórico de profundas transformações.
Estamos espectadores - sem perceber ainda em que medida somos também actores – de mudanças cujas causas não previmos nem prevenimos, e cujas consequências não antecipamos, e, por isso, não dominamos.
É o tempo das crises - que em menos de uma década, e principalmente desde 2008, alteraram aceleradamente a realidade.
Crise da dissolução das redes informais de solidariedade e de protecção de proximidade;
Crise financeira e económica que revelou, nas consequências gravíssimas, a desarticulação e a fragilização dos poderes e das instituições tradicionais;
Crise e enfraquecimento do Estado-nação, rompendo a ordem de Westfália.
Confrontamo-nos com uma realidade fragmentada numa multiplicidade de valores; com a rápida decomposição das sociedades em sistemas sociais autónomos, e a representação da coexistência humana como uma relação de concorrência.
A presença anónima dos chamados “mercados” financeiros globais; a especulação financeira sem regras nem regulação; o poder de hedge funds sem rosto nem espaço; a acção de poderes sem território; off-shores que neutralizam políticas e servem a criminalidade organizada, retiram-nos o lugar do sossego perdido.
É o fervor expansionista de diversas racionalidades; acantonados no espaço que foi a nossa zona de conforto, sofremos a incapacidade de reacção pela força das circunstâncias.
2. Na precaridade e nas incertezas da “sociedade líquida”, na formulação de Bauman, a Justiça tem de encontrar o seu espaço e fazer o seu caminho.
Na antevisão de pensadores da ciência política, a Justiça será a questão democrática e a questão política central no séc. XXI.
O séc. XIX foi o século dos parlamentos; o séc. XX o século da afirmação e da predominância dos executivos; o séc. XXI poderá ser essencialmente judiciário.
Mas haverá que saber que modelos de instituições e de juízes serão adequados para a resolução da questão democrática central do séc. XXI.
Repensar os modelos, as instituições, o modo e os instrumentos que possam responder, é obra primordial de construção intelectual e política, que se nos impõe como imperativo categórico.
A complexidade que inundou a Justiça manifesta-se na emergência de tensões de forte intensidade entre modelos contraditórios - o modelo de justiça normativo-social pós-industrial, e o modelo legalista e funcional-liberal (ou, numa leitura mais directa, neo-liberal).
O confronto entre modelos de Justiça, por vezes em ruptura silenciosa, está presente no interior dos poderes políticos e dos valores que - também aí - conflituam de forma mais ou menos intensa, e mais ou menos aberta ou recolhida nas ambivalências da linguagem.
Estas tensões resultam da natureza das políticas - não tanto já das ideologias, mas da crença no novo pragmatismo da razão instrumental.
Em consequência, no vai-vem instável entre modelos, com a natureza por vezes contraditória das reformas, a complexidade reflecte-se nas capacidades de resposta das instituições de justiça.
As mudanças sociais e económicas colocam à Justiça novos problemas, ou novas e inesperadas dimensões de velhos problemas; a sociedade produz hoje novos momentos conflituais, aumentando a jurisdicionalização da vida social.
Na verdade, o enfraquecimento da capacidade reguladora da lei; mais princípios do que regras; mais ponderação do que subsunção; perda da unidade e coerência das fontes, com a sobreposição de diversos ordenamentos, por vezes concorrentes, adensam o âmbito do papel criativo da jurisdição.
Em situações de crise e de emergência, a jurisprudência pode ser confrontada com caminhos críticos de contradição entre a lei e os princípios.
Clama-se por um outro modelo de justiça - não tanto numa perspectiva institucional, mas sobretudo nas formas, nas abordagens, nos fins e nas prioridades; pretende-se impor a extensão do modelo do mercado a todos os sectores da vida, e também às instituições de justiça.
Modelo que responda ao primado das regras do jogo da economia; a justiça seria então uma actividade performativa, transformada em serviço que deve assumir a eficácia como valor central, sendo a lei reconduzida a um simples parâmetro de decisão, como um preço ou um custo de transacção.
A função da Justiça não seria já conciliar interesses contraditórios, nem construir, no domínio penal, equivalências justas entre um acto e a punição, mas “produto” e instrumento de segurança na finalidade cardinal da política.
A eficácia definiria o acto de justiça, transformada em “produto” na empresa de serviços a que se querem assimilar as instituições.
A extensão dos princípios do mercado, fazendo da justiça um “produto”, problematiza, como salienta Garapon, a questão da independência, com novas fontes de pressão: o número, a quantidade, a super-normalização, a parametrização, de modo a tornar a justiça comparável a uma actividade dominada pelo mercado.
As proclamações para a recomposição, induzidas por este discurso, escondem, no entanto, uma ideologia estruturada ou apenas marcada pelo ar do tempo, que tenta impor a construção e a decisão política para desinstitucionalizar, através dos movimentos de desjudicialização ou de privatização do contencioso.
Mas o Estado e as suas instituições fundamentais, particularmente a instituição judicial, não são, nem podem ser tratados, como empresas em regime de mercado.
Mesmo nas concepções ideológicas do Estado mínimo, a Justiça tem de estar do lado do melhor Estado; Estado mínimo exige Justiça máxima.
3. Este tempo crucial impõe-nos a reflexão permanente sobre o modelo de Justiça que a República deve aos cidadãos, e que permita cumprir as promessas republicanas.
Modelo pelos princípios - e não na organização; a acentuação principialista pode conviver com diversos modos de organização.
A Justiça que queremos - e em que nos empenhamos quotidianamente - dará dimensão efectiva aos valores fundadores do Estado de Direito: o juiz, garante do respeito pelo princípio da legalidade; a preeminência do direito na acção de todos os poderes; a afirmação jusfundamental; e, nos limites das regras constitucionais e dos princípios constitutivos, a protecção contra todo o arbítrio.
A Justiça que exercemos, no enquadramento institucional apropriado, respeitará a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, impedindo discriminações; não sendo um nivelador social, a Justiça assegura a igualdade através do processo, independentemente da competência social de acção de cada um.
A Justiça que defendemos está exclusivamente ao serviço dos cidadãos, como resguardo dos valores individuais e da protecção dos direitos fundamentais.
A Justiça tem de realizar os equilíbrios da democracia e dos valores do Estado de Direito, sobretudo nas situações de incerteza e de forte densidade social e política das crises, em que se conjugam a indeterminação das causas e a abstracção dos causadores.
A eminente dignidade da pessoa humana, como princípio fundador da República; os princípios da proporcionalidade, da confiança, da solidariedade, da igualdade, da segurança jurídica, da equidade e da justiça constituem imperativos no cumprimento da obrigação de fazer justiça.
São princípios com um conteúdo mínimo irrenunciável, que marca a linha de fronteira entre o Estado material de direito e o Estado formal de lei.
Devendo ser tudo isto, é tarefa de todos - da cidadania; da política; da opinião bem informada e responsável; de magistrados e advogados e de todos os agentes da justiça - preservar a Justiça das pulsões deslegitimadoras da contemporaneidade.
Numa época de desdém pelos símbolos, não poderemos deixar enfraquecer a dimensão simbólica da Justiça; ao longo da História, a instituição esteve sempre impregnada de simbólico.
Mas simbólica sobretudo pela essência da natureza e da função, e não apenas pelo ritual que sempre acompanhou historicamente a instituição.
A dimensão simbólica da Justiça manifesta-se na transcendência da discussão, no valor maior de um direito comum superior a todas as partes, e na natureza inafastável dos direitos fundamentais.
E na independência dos juízes e dos tribunais.
4. A independência é condição de cumprimento da obrigação de justiça.
Num tempo de fragmentação de poderes e de recrudescimento de poderes fácticos e de centros de poder não institucionais, a Justiça apenas poderá ser exercida por juízes independentes, que sejam atentos ao “carácter implícito das estratégias anónimas” dos poderes não institucionais - na expressão de Delmas- Marty.
Nunca é demais afirmar que as garantias da igualdade e da imparcialidade não existem sem independência, e que a independência não constitui um privilégio dos juízes, mas um direito fundamental dos cidadãos.
Mas dissipada a névoa da retórica, a distância pode ser curta entre o discurso do respeito pelo princípio e as tentativas mais ou menos subtis de minimização.
Sobretudo numa sociedade, que sendo culturalmente de dependências, não interioriza e dificilmente compreende o valor da independência.
Em tempos complexos de volatilidade axiológica e de desassossego normativo, é essencial a preservação das condições de independência judicial.
A consagração constitucional da natureza de lei orgânica do Estatuto dos Magistrados Judiciais, até por analogia substancial e por maioria de razão relativamente às matérias para as quais está fixada a qualificação constitucional de lei orgânica, constitui uma garantia que deverá ser incluída na próxima revisão da Constituição.
Também a reserva de integridade do estatuto material constitui condição instrumental; mesmo na difícil situação do País, uma manipulação estritamente nominal das condições estatutárias, sem consideração pela especificidade do estatuto dos juízes, pode atingir o limite suportável, e afectar uma condição objectiva das garantias externas da independência.
5. A distorção nas representações sobre a justiça é enorme; a distância entre as opiniões negativas e a efectiva realidade foge a qualquer análise de racionalidade.
Impõe-se, por isso, desfazer estereótipos que foram progressivamente instalados nas percepções e nas representações.
Por um lado, o discurso recorrente sobre as relações entre a justiça e o crescimento económico; por outro, a questão da morosidade da justiça, que constituem a essência da narrativa sobre a “crise da justiça”.
A justiça sofre frequentemente a atribuição da responsabilidade pelo mau desempenho da economia.
Responder à asserção é tarefa metodologicamente difícil; sem a identificação dos fundamentos da afirmação não será possível responder senão com outra afirmação.
Os sistemas de justiça que funcionem com eficiência e no respeito por princípios estruturantes, têm, com certeza, uma função essencial na criação de confiança e na estabilidade das relações sociais - e, por isso, terão reflexos na economia.
A independência e a eficiência de um sistema de justiça constituem factores de confiança.
Mas nem mais nem menos do que relativamente aos diversos campos da vida social em que a justiça deva intervir; a criação de um “ambiente atractivo para os negócios” não pode ser autonomizada como fim.
Esta visão é fechada e mercado-cêntrica, própria de uma cultura dominada pela razão instrumental da economia.
A relação de causalidade directa ou quantificada entre a justiça e o crescimento económico não está demonstrada.
A Justiça não fez a crise; bem ao contrário, sofre a crise e as consequências das perturbações da economia; tendo a função de definir direitos, não pode inventar valor onde valor não exista.
Em recente proposta de exercício - Justice Scoreboard - a Comissão Europeia retoma os critérios que apresenta como condições de um “ambiente atractivo para a economia” - qualidade, independência e eficiência, a previsibilidade, o tempo razoável, decisões exequíveis, protecção do direito de propriedade; execução dos contratos e de débitos privados.
Podemos dizer que, no essencial, preenchemos estes critérios; que não seja pela justiça que seja afectado o crescimento económico.
Os tribunais são independentes; os juízes decidem com imparcialidade; as decisões são previsíveis e existem condições para a criação de estabilidade jurisprudencial; a jurisprudência não menoriza a estabilidade dos contratos; a propriedade é respeitada como valor constitucional.
Mas é necessário dizer claro que num sistema de valores, as decisões judiciais não são determinadas pelas consequências que possam ter na economia; a justiça não é consequencialista; é deontologista.
Cumprimos os critérios axiológicos e estruturais para um “ambiente económico” atractivo, a que se refere o documento da Comissão Europeia.
Resta o tempo das decisões e a acção executiva, que são as críticas mais comuns; assumimos a crítica e a razão da crítica, mas não aceitamos a disformia que algumas opiniões pretendem elevar à categoria de dogma.
A este respeito há que afastar alguns preconceitos que se têm gerado na ligeireza das simplificações.
A celeridade não pode ser o tempo da urgência e do imediato; não podemos ceder à “ditadura multiforme” da urgência.
A justiça “pronta” deve ser - todos reconhecemos - um imperativo para reintegrar a ordem afectada pela divergência sobre direitos: no conhecido aforismo, justice delayed, justice denied.
Mas deve ser “pronta”, na condição de nunca deixar de ser um momentum, uma trégua, e de ser a reafirmação da superioridade da palavra sobre as formatações pré-construídas dos automatismos.
A justiça é a instituição de reflexão; introduz uma ruptura no espaço e no tempo, que suspende o imediato da reacção para ter o tempo de reflexão.
Por isso, as condições de equidade do processo se referem à razoabilidade dos prazos de decisão; a razoabilidade enquanto justa medida, moldada pelas circunstâncias de cada caso, não pode ser assimilada simplificadamente à urgência da celeridade.
Esclarecidos os equívocos - com realismo céptico, pois só pode ser esclarecido quem queira ser esclarecido - podemos dizer que, em geral, as instituições de justiça, e especificamente os tribunais, respondem razoavelmente no plano sistémico, e estudos comparados revelam resultados que se situam na média dos parâmetros europeus.
Mas devemos reconhecer que - porventura vezes demais - existem casos problemáticos de não respeito pelo prazo razoável, que não têm justificação, e afectam a imagem interna e externa, nomeadamente com as decisões do TEDH.
Há que reconhecer também que, não obstante os resultados positivos deste ano, a acção executiva assume uma dimensão quantitativa que esmaga o sistema; e que são acentuadas as dificuldades em processos de insolvência e de liquidação.
As alterações legislativas nas leis de organização e de processo, uma adequada gestão de meios humanos, e a utilização de instrumentos de gestão preventiva que permitam antecipar situações de risco, têm que contribuir para eliminar em tempo razoável as disfuncionalidades que condicionam a dureza negativa das representações da Justiça.
6. No Estado democrático, a justiça só pode ser uma instituição de confiança.
Fazer possível a obrigação de justiça impõe-nos a afirmação da actualidade dos princípios constitutivos, o reforço da dimensão institucional, e a preservação do espaço do simbólico contra as investidas pós-modernas de dissolução das instituições.
A “democracia de manipulação” é hostil às instituições pela conjugação contextual de vários poderes e interesses; sem ganhar e conservar a confiança dos cidadãos e da cidadania, a Justiça não será contrafáctica aos novos meios de regulação social - o dinheiro, o poder e a influência.
A confiança – “instituição invisível”, na expressão de K. Arrow - é um marcador de qualidade na relação entre as instituições e as representações sociais.
No entanto, uma preocupante crise de confiança tem afectado na última década a instituição judicial.
Por isso, recuperar a confiança na justiça institucional é a interpelação maior do tempo presente.
Porque sem confiança, mesmo a excelência jamais alcançará o estatuto de reconhecimento.
A reflexão sobre as causas da erosão insuportável da confiança na última década, defronta-se, porém, com perplexidades e aporias não superáveis racionalmente:
- A confiança erodiu-se apesar de na última década as respostas da justiça e os índices de avaliação, com excepção da acção executiva, terem melhorado em todos os indicadores - primeira perplexidade;
- As projecções negativas dos índices de confiança revelam-se em sondagens publicadas mensalmente, precisamente quando o “caos normativo” faz dos tribunais a primeira fonte reguladora; o recurso ao juiz cresceu em termos porventura inesperados - segunda perplexidade;
- Estudos realizados com critérios científicos e com rigor académico, relativos às percepções sobre a justiça - no caso, a justiça civil - concluíram que as percepções são acentuadamente negativas nos entrevistados que não tiveram qualquer contacto com a justiça, e positivas na maioria dos entrevistados que tiveram contacto e recorreram à justiça - terceira perplexidade.
Não é o lugar nem o momento para uma análise das razões da contradição.
Mas é suficiente, pelo menos, para permitir a conclusão de que boa parte das representações e percepções negativas que afectam a confiança na justiça, são muito provavelmente induzidas por mediações exógenas.
A narrativa recorrente da opinião com acesso ao espaço público, obsessiva e totalitária pela generalização, que confronta a justiça com as mais diversas responsabilidades e fonte jurada de quase todos os males, tem certamente a sua quota no desgaste da confiança e na degradação do prestígio da instituição.
É, com certeza, o exercício da liberdade de expressão e de opinião, que é o nervo da democracia; mas a liberdade de expressão fortalece-se através do exercício do contraditório que seja imposto pela convicção da razão.
Por isso mesmo, neste contexto, a restauração da confiança constitui um dever dos agentes da instituição, mas também um dever de cidadania.
Numa sociedade democrática avançada é cada vez mais necessário reforçar a imagem da justiça; é urgente trazer de novo o rigor, a cultura, a pedagogia e a inteligência à formação da opinião sobre a justiça.
Para tanto, a prestação de contas - a accountability - tantas vezes apontada como deficitária, pode contribuir para acrescentar confiança.
Mas a prestação de contas - nunca é demais recordar - refere-se ao sistema e às condições de funcionamento; não tem por objecto a discussão sobre decisões concretas.
E apenas pode concretizar-se através dos meios e procedimentos institucionais previstos na lei.
A Justiça deve estar sujeita à discussão pública, todos os dias, porque todos os dias decide questões de relevante interesse geral - e está sujeita à crítica como nenhum outro dos poderes; mas a prestação de contas nada tem que ver com o chamado escrutínio público, que é exercício diferente; e não é um direito, é um dever.
Mas a discussão e a crítica devem ter por objecto a valoração dos fundamentos e do rigor da argumentação; qualificações ou qualificativos por vezes afrontosos, não são discussão nem crítica.
A legítima - e necessária - discussão das decisões dos tribunais terá como limite a desconsideração gratuita, e deve respeitar também as exigências impostas pelo núcleo essencial do princípio da separação de poderes, constitutivo do sistema democrático.
Por outro lado, o escrutínio académico das decisões dos tribunais, em diálogo permanente com a doutrina, é essencial; porém, o escrutínio académico entre nós tem sido escasso.
Por fim, o escrutínio público da justiça é feito através das mediações da comunicação.
Mas requer competência, tempo, estudo, responsabilidade e a ausência de preconceitos ou de negligência intelectual; o escrutínio não é sobreposição de papéis, ou julgamentos paralelos, nem a manifestação de impressões soltas, pseudo-conclusões avulsas ou juízos de valor sem factos.
Sendo muito exigente, requer distância, tempo de reflexão e continuidade conceptual.
Mas são raros os exercícios que revelem os mínimos de compreensão pela natureza e assumido o rigor intelectual no escrutínio da Justiça.
Não existe hoje na nossa vida colectiva - podemos dizer - uma instituição em que a distância entre a efectiva realidade e as percepções negativas seja tão devastadora.
A afirmação que quero deixar bem forte, não é voluntarismo optimista ou a visão de Cândido; é uma análise objectiva, e permitam-me a imodéstia de pensar que é lúcida e tributária da razão.
Também por isso é tempo de emergir na sociedade civil amiga dos princípios, no mundo académico e nos meios intelectuais, um sobressalto cívico que possa contribuir para eliminar preconceitos e para fazer regressar a confiança, a bem do Estado de direito e da democracia.
Temos para com a cidadania esta dívida intelectual e de coragem.
7. Neste caminho árduo, cada um de nós, magistrados e agentes da Justiça, tem que estar na primeira linha do combate.
A legitimidade e a confiança têm de ser conquistas de cada dia, no rigor na acção, na dedicação, no melhor que soubermos e pudermos e na serenidade da coragem.
Mas ganham-se ou perdem-se muito nos “pequenos nadas” de todos os dias; devemos estar atentos aos pormenores.
Para construir a confiança, a justiça deve comunicar; e comunica através dos actos escritos - as decisões dos tribunais; mas a comunicação da justiça exige sobriedade e vigilância semântica.
A manifestação de crenças pessoais e de estados de alma, ou as formulações de linguagem excessivamente subjectivas, não são, com certeza, prestáveis como argumentação, e não contribuem para a qualidade da jurisprudência.
Lidas sem contexto, e exibidas como caricatura pelos media, as considerações marginais desviam a atenção do rigor da substância e induzem compreensões erradas, menorizando as decisões.
A atenção aos pequenos detalhes do quotidiano, a que muitas vezes a intensidade do trabalho não deixa lugar, permitirá aos cidadãos percepções directas positivas, afastando sentimentos de incompreensão.
A confiança supõe estabilidade e coerência; guardando a independência de julgamento, e com a ressalva do rigor da consciência, devemos ter atenção ao risco de balcanização, quando a proliferação de opiniões pode diluir a força das decisões.
Mas a confiança não será recuperada se não forem energicamente enfrentadas as sérias disfunções e os bloqueios que ainda afectam a administração da justiça - sobretudo o respeito do prazo razoável nos casos que, mesmo sendo pontuais, podem ser excessivos, e especialmente o peso dos números da acção executiva.
E tomando as palavras a Canotilho, sem esperar que descortinemos a “espada mágica” ou o “contrafeitiço” indispensáveis à magia da razão.
8. Vivemos e somos actores num tempo decisivo para a Justiça.
Neste lugar simbólico, queria prestar a minha homenagem, a vós e a todos quantos nos antecederam, pela construção permanente do prestígio do Supremo Tribunal como instituição de referência de Portugal e da Justiça durante quase 2 séculos.
Entregá-lo-emos aos que nos sucedam com o prestígio intacto.
A causa da Justiça foi, e é, o nosso projecto de vida, a que demos por muitos anos o melhor de nós e a integridade das nossas capacidades.
Reafirmemos o nosso comprometimento, acompanhados pelas palavras do "Projecto" de Sophia.
“Esta foi a sua empresa: reencontrar o limpo do dia primordial.
Em contínua memória de um projecto que sem cessar de novo tentaremos”.
Possa eu; no fim do tempo que me concederam, possa eu dizer:
- Caminhei o meu caminho; combati o bom combate; guardei, íntegros, os valores da Justiça, e cumpri as promessas da República.
Disse.
António Henriques Gaspar
O empurrar para "eles que resolvam envergonha-me ver aplicado perante a troika ou perante o tribunal; parece genetico ou doença,talvez falta de moral profunda, já que é secundada por tanta gente a querer assassinar o mensageiro; Talvez seja a normalidade que as telenovelas, futebol,fatima e pobreza incubam nas pessoas,mas faz pena e augura continuação de dificuldades maiores.
ResponderEliminarAntónio Cristóvão
EliminarSe leu o discurso do novo Presidente do STJ, verá que é o primeiro a "defender" a justicialização da política, pela rebaldaria que os políticos vão espalhando e jogando contra os direitos dos cidadãos, que tem que ser garantidos por alguém.
Nem se viu contestação e até a ministra da Justiça concordou, pois claro!
Haja justiça, que a moral vem a seguir...