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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Se não houver pobres, como irão os ricos para o céu?

No nosso tempo, nada rivaliza com a economia, em termos de poder. Há menos de dois séculos atrás, Karl Marx chocava o mundo ao dizer que a política (estou a simplificar) seguia a economia. Faz 50 anos, a direita usava argumentos religiosos, espirituais, morais para enfrentar o "materialismo ateu", que reduzia a riqueza do ser humano, criado à imagem de Deus, à vulgaridade económica. Mas como bem disse, embora grosseiramente, James Carville, o diretor de marketing de Bill Clinton que foi decisivo para o eleger presidente dos Estados Unidos: "O que conta é a economia, seu estúpido".
Este facto tem vários desdobramentos. O primeiro fortalece a democracia. Acabou, quase por completo, pelo menos nos países em que há comunicação de massas, a ideia de que os pobres acatariam a sua condição porque Deus assim o quis. Uma notável peça de Pedro Calderón de la Barca, "O grande teatro do mundo", sustentava, na década de 1630, que cada um deveria contentar-se com a sua condição social, do miserável até ao monarca, e cumprir o seu papel (daí, a referência ao teatro) adequadamente. Hoje, nem pensar. Na nossa sociedade, todos querem viver melhor. Mesmo quem está no topo da escala social e poderia nada almejar a mais, continua a desejar subir. Quanto aos mais pobres, nenhum argumento religioso os convencerá de que devem suportar a sua situação, digamos, cristãmente. Um arcebispo de Diamantina, líder da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, disse certa vez que é preciso haver pobres, e mesmo muito pobres - porque, se não houver, como é que os ricos conseguirão ir para o céu, não podendo exercer a virtude da caridade? Admirável esta preocupação de salvar os ricos no Além, ainda que às custas dos pobres aqui e agora. Mas acabou. Mais ninguém diria essa tolice, hoje.
Vencer a pobreza só é possível com a economia
Portanto, os pobres querem, dos governos, que os ajudem a melhorar de vida e a deixar a pobreza. A classe média quer subir na vida e os ricos, pouco numerosos mas com bala na agulha, também. Isso faz que (em países como o nosso) a grande maioria de pobres tenha bem claro o que deseja da democracia: que ela seja social, isto é, que não fique só na política, mas mexa também na estratificação da sociedade, tornando-a mais justa. Esse fator, fortemente democrático, está ligado ao primado da economia nos nossos tempos.
Mas há outro lado, que é pouco democrático. Porque quem entende de economia? Bem poucos. O sufrágio universal impôs-se. Os eleitores têm cada vez mais consciência do que desejam e querem. Mas o instrumento para realizar essa prosperidade crescente, ou pelo menos para acabar com a miséria, reduzir a pobreza e baixar a desigualdade, é arcano - isto é, de difícil compreensão. Por outras palavras: está numa ciência (ainda que não exata), cujo domínio exige especialização e conhecimento profundo. Daí que as eleições tenham um alcance limitado. Isto porque, entre o dia da eleição, que é quando se manifesta a democracia, isto é, a soberania popular, e os 4 anos de gestão dos negócios públicos, onde a economia prevalece, há uma distância - e mesmo um abismo.
Tudo isto, tanto o aspecto democrático, que consiste num povo que não aceita mais a pobreza como natural ou santa, como o lado pouco democrático de uma gestão das coisas cuja compreensão escapa à esmagadora maioria, traz consequências para as democracias. Primeira e óbvia: nunca se promete uma recessão, um empobrecimento. O que se oferece é o contrário. Vejam a Califórnia, tema de reportagem de novembro na "Vanity Fair", acessível na Internet: o Estado quebrou, vários municípios ricos quebraram, sobretudo porque uma emenda constitucional de perfil conservador exige 2/3 do Legislativo para aumentar qualquer imposto. Kaputt. É um caso extremo, mas que mostra que os políticos, quando concorrem a uma eleição, têm de omitir o que vão fazer, ou mesmo mentir. De onde José Serra (mude-se o nome) tiraria os aumentos que prometeu, no mês final antes da eleição de 2010 (mude-se a data), para o salário mínimo e a bolsa-família (mude-se o nome do subsídio)? Não o acuso; apenas digo que nenhum político pode agir de outro modo. Vão prometer. Então, a emancipação do povo, que consiste em ele não acatar mais a pobreza, vem junto com sua infantilização: ao povo, não se conta a verdade.
Daí, outra consequência: o primeiro ano de governo é de cortes e talvez de recessão. Já o ano da eleição tem que ser próspero, custe o que custar. Os economistas ficam de cabelos em pé ao verem isto, claro. Mas, por outro lado, as suas receitas só eles entendem. Pouca gente mais. Alguém acredita que Fernando Henrique Cardoso (qualquer PM) entendia profundamente de economia? Ele conhece finamente a sociedade, os seus processos e a sua política. Emprestou a sua competência para viabilizar o “Plano Real”, e com ele ganhou 2 mandatos presidenciais. Mas a economia tem segredos. Por isso, quem entende dela - ou quem convence os outros que entende dela - tem acesso direto aos governantes.
E aqui vem o nosso último problema. Quase todo o receituário dos economistas, salvo os keynesianos e os (poucos) marxistas, é conservador. Propõem cortes de gastos públicos, redução de direitos sociais, até mini-recessões. Não há como defender isto junto do povo, seja este grego, italiano ou brasileiro. Há alternativas? Claro que sim. A Argentina renasceu sem esse receituário. O Brasil superou 2008 sem essas receitas. A Islândia recusou-se a cumpri-las. Claro que, noutros casos, o caminho será outro. Mas geralmente só se diz a receita quase única, aquela que nunca passaria numa eleição. Daí que, se a democracia exige uma economia em crescente prosperidade, a atuação dos economistas nem sempre seja muito democrática.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo

2 comentários:

  1. A Economia pode ser, e é, muito importante. Mas o poder político não pode deixar os agentes económicos à rédea solta.
    É verdade que a Democracia, e a necessidade de ganhar eleições, contém em si todas as contradições apontadas, mas recuso-me a considerar que não há maneira de sairmos disso.
    Acredito, com Marx, que o Capitalismo, de crise em crise, acabará por se autodestruir.
    Não seria melhor encontrar alternativas antes da catástrofe?

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  2. Elisabete
    Para já é a Democracia que está a ser menorizada, talvez como mais um esforço de resistir ao "fim" do capitalismo desenfreado, que se ha de regenerar, nem que seja à custa à custa da crise, como vemos e aceitamos. A alternativa é a Democracia, a revalorização do poder Político, a regulamentação da economia e das finanças, sobretudo na Bolsa e de uma redistribuição da riqueza por quem a gera.
    O contrário, que é aquilo com que nos amarguram, é o rastilho para uma guerra planetária, inevitavelmente...
    Esperemos que haja bom senso.

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