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domingo, 26 de janeiro de 2014

Regular os excessos e a riqueza sem regulamentação?

Uma em cada 3 pessoas vive na pobreza.
Miguel Pimentel 
As questões sobre a desigualdade na distribuição da riqueza no mundo são conhecidas mas a frieza dos números dá-nos uma perspectiva mais real e dramática deste tema: as 85 pessoas mais ricas acumulam a mesma riqueza que as 3.570 milhões mais pobres, 46% da riqueza do mundo é detida por 1% das famílias mais ricas, 7 em cada 10 pessoas vivem em países onde a desigualdade na distribuição da riqueza se tem agravado nos últimos 30 anos, 1% da população mundial detém 110 biliões de dólares de riqueza (estou a falar na convenção tradicional, são 110 milhões de milhões) que corresponde a 65 vezes a riqueza detida pela metade da população mais pobre, a percentagem de riqueza detida por 1% da população mais rica em relação à restante população tem aumentado em 24 de cada 26 países entre 1980 e 2012, nos Estados Unidos 95% da riqueza gerada com o crescimento pós-crise, desde 2009, foi captada por 1% da população enquanto que 90% da população ficou mais pobre, uma em cada 3 pessoas vive na pobreza.
O Fórum Económico Mundial (FEM) é uma organização baseada em Genebra e conhecida fundamentalmente pelas suas reuniões anuais em Davos, em que a deste ano começou ontem. A missão do Fórum é louvável e baseia-se no compromisso com a melhoria do Estado do Mundo mas não é isenta de críticas. No final do século passado muitos se fizeram ouvir classificando o Fórum, juntamente com outras instituições como o Banco Mundial e o FMI, no grupo de malfeitores responsáveis pelos efeitos negativos do capitalismo, em especial pelo aumento da pobreza e destruição do meio-ambiente. O cantor Bono diz que é uma reunião dos “ricaços da neve” e não deixa de ter alguma razão porque a inscrição fica no mínimo por 25.000 euros e para ser garantida o candidato deve presidir a uma empresa que facture cerca de 5.000 milhões de dólares e que para ser membro do Fórum paga anualmente uma taxa de associação generosa.
Em cada ano o Fórum escolhe um tema para ser debatido, normalmente uma coisa genérica, mas tem existido uma preocupação crescente na desigualdade da distribuição da riqueza e na definição de estratégias para a combater. Claro que se compreendem as críticas que isto não passe de uma campanha de marketing com que os responsáveis políticos e os gestores das grandes empresas dizem estar de acordo. Mesmo assim não deixa de ser de extrema importância o debate sobre este tema. Em Novembro de 2013 o Fórum publicou o resultado de um inquérito num relatório com as Perspectivas da Agenda Mundial para 2014 em que classificava as desigualdades da distribuição da riqueza como o 2.º maior risco mundial para os seguintes 12 a 18 meses. De acordo com a interpretação dos resultados deste inquérito, a desigualdade na distribuição de rendimentos tem implicações directas na estabilidade social de cada país e é uma ameaça à segurança a uma escala global. Muitos partilham desta análise e alimentam a espectativa que a reunião de Davos defina os compromissos necessários para reverter esta tendência na desigualdade da distribuição da riqueza.
A Oxfam International, criada em 1995 pela fusão de um grupo de organizações independentes não-governamentais, partilha desta preocupação. A sua visão é conseguir um mundo sem pobreza e os seus objectivos passam pela ajuda no encontro de soluções para essa visão. Como contributo para a reunião de Davos publicaram um relatório no dia 20 deste mês com o sugestivo título “Governar para as elites – sequestro democrático e desigualdade económica”. Recomendo a leitura deste documento e realço neste texto algum do seu conteúdo.
Queria deixar bem claro que alguma desigualdade na distribuição da riqueza é fundamental e reconhecidamente essencial como factor de crescimento e progresso. Trata-se da recompensa pelos melhores talentos, pelo esforço ou empenho na actividade profissional, pelo recurso à inovação e, muito relevante, pela assunção de riscos inerentes ao empreendedorismo. O problema não está aqui, o problema está no excesso de concentração de riqueza que assistimos hoje porque esta tendência ameaça ou compromete que uma boa parte da população seja impedida de beneficiar dos seus talentos, da sua capacidade de gerar valor, no fundo, de ser compensado pela sua produtividade. O resumo é simples, desigualdade na distribuição de riqueza é salutar e imprescindível para um nível de eficácia necessário, desigualdade em excesso é um problema porque compromete a mesma eficácia.
Ainda para reforçar esta ideia e sem esconder a minha preferência por um sistema suficientemente capitalista, diria que o facto da geração de riqueza se concentrar numa percentagem relativamente baixa da população não é por si um problema, antes pelo contrário. Repare-se que não faltam estudos empíricos a mostrar que esta gente trata bem o seu dinheiro. Se alguém é muito rico não corremos o risco de ele “comer o dinheiro”, mais tarde ou mais cedo ele será maioritariamente investido ou distribuído, por ele ou pelos herdeiros, não se perde nem vem mal ao mundo por aí. Aliás, a característica de destruição de dinheiro só é evidente em 2 casos particulares, quando o ganho foi fácil, como acontece nos prémios de jogo ou equivalente, ou quando o dinheiro não é de ninguém ou pelo menos não é dos próprios como, infelizmente, vemos recorrentemente na classe política. Estes é que gastam sem a preocupação da yield ou do retorno apropriado. Em resumo, a acumulação de riqueza não é problema, a desigualdade extrema é que sim, e grande!
A desigualdade extrema na distribuição de riqueza é um problema por variadas razões. Em primeiro lugar é moralmente questionável mas, mais importante, tem um impacto negativo tanto no crescimento da economia como na redução da pobreza assim como cria diversos problemas sociais. Para além destas consequências directas ainda é potenciador de outras desigualdades, nomeadamente pelo efeito pernicioso que a concentração de riqueza possa provocar na representação política. Sei que este é um discurso típico da extrema-esquerda mas ninguém tem dúvidas das mil e uma maneiras que o poder económico utiliza na condução política, conseguindo paulatinamente que a produção legislativa não só seja feita em benefício dos mais ricos como, ainda mais grave, seja muitas das vezes produzida à custa dos mais pobres. As consequências são evidentes, trata-se do enfraquecimento do princípio democrático, da destruição da coesão social e do desaparecimento da igualdade de oportunidades, tudo isto, princípios fundamentais para que uma sociedade funcione normalmente.
O percurso parece evidente, ou existe coragem e autonomia política para travar a influência que os mais ricos têm na produção legislativa ou os governos “continuarão” a trabalhar no seu interesse, aumentando cada vez mais as desigualdades. Este fenómeno foi resumido pelo jurista americano Louis Dembitz Brandeis há quase 100 anos: “Podemos ter democracia ou podemos ter uma concentração da riqueza nas mãos de poucos, não podemos é ter as 2 coisas”. Tenho muito receio que a solução de um problema desta dimensão passe pela actuação dos governantes nos diferentes países mas felizmente e paradoxalmente são hoje também os mais ricos que precisam de reverter esta tendência. Não o fazer no curto prazo terá consequências irreversíveis, dando lugar a um monopólio de oportunidades, em que as taxas de imposto mais baixas, a melhor educação e sistema de saúde estarão disponíveis apenas para os filhos dos mais ricos, uma dinâmica que se tornaria um ciclo vicioso de vantagens transmitidas de geração em geração e que acabaria inevitavelmente numa ruptura social que a ninguém interessaria.
É curioso que este problema é transversal e tanto existe nos países mais ricos como nos mais pobres, tanto existe nos países desenvolvidos como nos que dizemos estarem em desenvolvimento, assim como, espantem-se alguns, em países com sistemas políticos quase opostos. Num inquérito recente realizado em 6 países (Espanha, Brasil, Índia, África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos) mostra-se que a maioria das pessoas acredita que a produção legislativa é enviesada de modo a favorecer os mais ricos. Alguma investigação científica, baseada em estudo de casos, evidencia este “sequestro” democrático e desigualdade económica em exemplos de desregulamentação financeira, falta de equidade em sistemas fiscais, legislação que favorece a evasão fiscal, políticas económicas de austeridade e a apropriação de recursos com a indústria de petróleos e de minérios.
Nem tudo são desgraças e a boa notícia é que existe forma de reverter esta situação. Aliás, a história mostra-nos exemplos de sucesso, alguns mais antigos e outros mais recentes. Veja-se que tanto a Europa como os Estados Unidos conseguiram reduzir as desigualdades e crescer economicamente nas 3 décadas posteriores à II Grande Guerra. A desigualdade também diminuiu significativamente na América Latina durante a última década, graças a uma fiscalidade mais equilibrada, a um ajustado serviço publico, a uma protecção social sem exageros e a políticas de emprego dignas. O denominador comum destes 3 casos de sucesso é uma política efectivamente representada pela maioria e no interesse da população em vez de controlada por uma minoria de privilegiados. Reparem no mesmo paradoxo, estamos a falar de políticas que beneficiaram tanto os ricos como os pobres, como naturalmente tem que ser.
A reunião de Davos pode ser o tal grupo dos “ricaços da neve”, como Bono lhes chama, mas são cerca de 200 académicos, 300 governantes, 50 representantes de organizações internacionais e mais de 2.000 gestores das maiores e melhores empresas do sector privado. Sem dúvida um lobby natural que tem nas mãos o poder de reverter a tendência do aumento exagerado da desigualdade da distribuição de riqueza. A Oxfam apresenta-lhes um desafio de se comprometerem com uma série de práticas, nomeadamente, não utilizar paraísos fiscais para evitar impostos nos seus países ou nos países em que investem, não utilizar a sua riqueza para obterem favores políticos, divulgarem os seus investimentos em empresas e em fundos onde sejam beneficiários, aceitar uma fiscalidade progressiva tanto sobre a riqueza como sobre os rendimentos, desafiarem os seus governos a usar as receitas fiscais em beneficio de sistemas universais de saúde, de educação e de protecção social dos mais pobres, exigir a prática de ordenados dignos nas empresas que detêm ou controlam e por ultimo, desafiar outras elites económicas a aderirem a este tipo de compromissos. É sem dúvida um problema de consciência e haverá muitos pessimistas que consideram que os participantes de Davos farão apenas de conta que tomarão estas recomendações em consideração porque lhes fica bem assim dizerem. Não acredito, aceito que seja um problema de consciência, mas derivado da necessidade de reverter com urgência um problema de todos que é manifestamente real.
Nem as empresas nem os gestores nem os mercados nem os governantes nem ninguém poderão sacudir a água do capote como se isto fosse apenas um problema dos outros. As políticas concretas a aplicar em cada país têm que ser adaptadas a cada contexto específico mas temos a sorte dos exemplos históricos de sucesso tanto em países desenvolvidos como noutros em desenvolvimento, que poderemos replicar. Este é o princípio da solução, que começa por nós e por isso é que estou optimista.

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