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sábado, 5 de outubro de 2013

“A esta crise seguir-se-á um Renascimento europeu”

Na segunda parte do seu discurso numa recente conferência organizada pelo “Trouw”, o escritor holandês Geert Mak diz que a crise política e institucional na Europa irá criar um novo balanço nas relações entre as próprias instituições europeias, a UE e os seus cidadãos. Excertos.
Há mais de 130 anos, a 11 de março de 1882, o filósofo e polemista francês Ernest Renan fez um discurso na Sorbonne, que viria a ser uma referência durante muito tempo. Tinha por título “Qu’est-ce qu’une nation?”, “O que é uma nação?”. “Uma nação é […] uma grande solidariedade constituída pelo sentimento de sacrifícios realizados e daqueles que ainda estamos dispostos a fazer.”
Continua a haver, em especial em Bruxelas, filósofos e políticos europeus que gostariam de pôr de lado o Estado-nação como sendo um mito obsoleto e até perigoso do século XIX. Consideram a crise como um meio para, finalmente, dar um grande salto em frente; ainda sonham com uma federação europeia. Contudo, se aplicarmos a descrição clara de Renan ao nosso continente, conclui-se que – mesmo meio século depois de estabelecidas as fundações da UE – pouco há afinal para ver dessa nação europeia. Aquilo que a crise e as subsequentes medidas de austeridade extrema mais afetaram foi precisamente a solidariedade e a disposição de continuar uma vida em comum, sublinhadas por Renan.
Regulamentos bem-intencionados de Bruxelas
Mas isso não é tudo. O problema de todos esses grandes sonhos europeus é que, ao rejeitarem o Estado-nação, ignoram também, de um modo geral, a importância do fator “lugar”. Dos queijos não pasteurizados semi-ilegais que se vendem no mercado de Dieppe, ao café cheio de fumo da aldeia húngara de Vasarosbec que não tem casa de banho, ao chocolate de Bruges, aos painéis solares de Neukirch, à construção do metro em Amesterdão – o que é que não foi abafado pela chuva de regulamentos bem intencionados de Bruxelas?
Todos os exemplos apontados constituem sintomas de uma federação europeia, que ficou completamente desequilibrada nas últimas décadas. Demasiadas questões que uma ligação federativa normal, como os Estados Unidos da América, deixa a cargo dos Estados-membros – o queijo e o chocolate, por exemplo – são regulados a partir de Bruxelas. Por outro lado, na Europa, muitas das áreas políticas, que são geridas de forma mais ou menos centralizada em todas as federações – como o setor financeiro, a política externa e a defesa –, continuam a ser geridas pelas capitais nacionais. Os cidadãos europeus sentem vivamente isso. E, para além da falta de democracia, é essa situação que enfraquece o apoio à União Europeia.
Criação de um senado europeu
Deveremos ressuscitar o Estado-nação em toda a sua glória, como defendem alguns? Teremos então, como europeus, de gerir em comum, sem a UE, mil e um assuntos, que vão das quotas de pesca aos acordos financeiros e à política energética? Para já não falar dos problemas climáticos, que se abateram velozmente sobre nós, no século XXI. Não terá o próprio mundo ultrapassado há muito os laços nacionais?
Gostemos ou não, teremos de encontrar formas específicas, democraticamente controladas, desse “espaço” europeu omnipresente. Será difícil e os problemas abundarão, mas não há maneira de voltarmos a 1956.
O Estado-nação pode entretanto conquistar um novo lugar no interior da democracia europeia. Por conseguinte, podemos justificadamente defender a criação de um senado europeu, que, à semelhança do que acontece nos EUA, reforce o elemento nacional no interior do Parlamento Europeu e da democracia europeia. Pelo menos igualmente importante é transformar o ideal nacional do século XIX de “sangue, língua e território” num ideal mais político, como fizeram os norte-americanos. Esse processo encontra-se agora em pleno andamento na Europa.
Renascimento europeu
À crise seguir-se-á um Renascimento europeu. De uma espécie ou de outra. Da duramente posta à prova União Europeia, teremos de recuperar um espaço europeu, no qual todos os europeus se sintam, de certa forma, em casa. Receio bem que menos impulsionado por sonhos e pelo idealismo, e mais instigado pela amarga necessidade. Não exultante, mas realista e modesto.
Em primeiro lugar e acima de tudo, que tenha muito mais em conta os valores associados ao conceito de “lugar”, nos regulamentos europeus e nas instituições europeias. Que respeite, promova e, sempre que possível, proteja da já generalizada agressão europeia e mundial tudo o que seja conforme com esses valores.
Esse espaço tem também de ser criado no debate político, nem que seja apenas não rejeitando simplesmente aqueles que deixaram de se sentir em casa no seu próprio lugar no mundo, rotulando-os de populistas e nacionalistas. Trata-se, é certo, de sentimentos que são sempre explorados pela ultradireita. Mas isso tem tudo a ver com o facto de os movimentos progressistas e liberais-conservadores terem sistematicamente prestado pouca ou nenhuma atenção à necessidade humana de ter uma casa, um lugar e tudo o que lhes está associado.
Economias paralelas de redes locais
Em segundo lugar, esse equilíbrio pode ser restabelecido, dedicando muito mais atenção aos elementos locais que possam ser um contributo para a Europa. Por toda a parte, mas em especial no Sul, assiste-se ao despontar, induzido pela necessidade, de economias paralelas, baseadas no conhecimento e nos produtos locais, de redes locais – ou seja, sem comércio intermediário – de concessão local de crédito, de confiança local.
Por último, o equilíbrio pode ser restabelecido através da extensão do conceito de “lugar” que tem vindo a verificar-se sobretudo ao longo das últimas décadas. Cada vez mais se vê que o conceito de “lugar” está a ultrapassar os contextos nacionais; nalguns casos é a região – que frequentemente atravessa fronteiras – por vezes a aldeia e cada vez mais a cidade.
Por exemplo: presentemente isso acontece acima de tudo nas cidades, onde, a despeito de todo o pessimismo, a criatividade e a inovação estão a florescer, onde os migrantes vão e vêm, onde os conselhos municipais estão a desmantelar as barreiras nacionais e a estabelecer laços uns com os outros, em todo o mundo. Estamos a viver um processo longo e difícil, desde antes da crise e desde que esta eclodiu. Por tentativa e erro, caminhamos para uma Europa constituída por pessoas, em vez de uma Europa constituída por Estados.

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