As últimas duas semanas produziram toneladas de lixo mediático, como é habitual. Se a troika se lembrasse de criar um imposto sobre a tralha que nos assoberba, talvez resolvêssemos, então, a dívida... Pela capacidade política não vamos lá, de certeza - preparem esses ossos.
Nicolau do Vale Pais
No meio deste mar de indiferença, frivolidade, e algum cinismo, surgem as declarações de Teodora Cardoso, Presidente do Conselho de Finanças Públicas, e de D. Januário Torgal, Bispo das Forças Armadas. E o que disseram, então, que possa ter causado inusitada indignação a figuras como a jornalista Maria João Avillez, ou feito resfolgar António Borges, que, imprudente, nos deu finalmente a conhecer o seu sonho de desenvolvimento neo-soviético para Portugal? Nada de especial. Não foi o que disseram, mas como disseram, e, sobretudo - e esta foi a parte ao arrepio do "prato do costume" que mais me agradou - a absolutamente descomprometida independência cívica com que o fizeram. Desinteressados, separaram responsabilidade pública de responsabilidade individual, Estado de particulares, país de partidos. Não é preciso sequer concordar para gostar da transparência destas declarações; quem precisa de unanimidade e concordância para chegar ao pasto é o gado. E nós não somos gado.
Teodora Cardoso falou do 3º Mundo sem léria ideológica. O modelo de permanente redução salarial não só é insustentável a médio prazo, como os resultados da sua erosão no poder de compra e coesão social são depauperantes a nível das receitas fiscais e explosivos ao nível da estabilidade social. De permeio, não se esqueceu do Citigroup, banco americano cujas influências lobistas têm sido nefastas para a República Portuguesa, e lembrou a qualificação como caminho para a competitividade, ao invés da via terceiro-mundista do empobrecimento. Mostrando-se com pedagógico optimismo, salientou que teremos de "pensar pela própria cabeça e não fazer só o que nos mandam".
Já D. Januário Torgal, Bispo das Forças Armadas, saiu em defesa da dignidade dos Portugueses ao dizer o evidente: que é absolutamente chocante a forma como o primeiro-ministro paternalizou os cidadãos que supostamente representa, ao agradecer-lhes o "esforço" como se de empregados de uma empresa se tratassem. Depois de falar do conforto da zona do desemprego ou da solução mágica da emigração, Passos vem agora agradecer aos Portugueses num estilo Presidencialista, que foi a forma que encontrou para esconder a sua própria mediocridade programática e política; e esta falsa prudência, esta mudança de tom súbita a roçar a hipocrisia, tem, pelo meio, o aparecimento de três dados fundamentais:
- O caso Relvas, monumento sombrio à vida dos partidos em Portugal;
- O ajuste súbito do défice e correcção do nível da receita altamente desfavorável ao Governo (refiro-me às correcções anunciadas dia 31 de Maio pela Unidade Técnica de Apoio Orçamental), que fazem prova da completa ineficácia política da austeridade no que toca a qualquer hipótese de recuperação económica;
- O tombo de cerca de 10% nas sondagens para o Governo.
D. Januário está legitimado e inspirado pela história recente, nomeadamente por esse documento que deveria estar emoldurado nas paredes de todas as escolas públicas em Portugal, que é a carta de D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto, a António Oliveira Salazar, redigida a 30 dias das eleições de 1958, que, depois de falsificadas, conduziriam ao posterior assassinato de Humberto Delgado. É uma carta sobre a desumanidade da fome e da subjugação, que Pedro Passos Coelho deveria ler, ao invés de nos tentar alimentar com amendoins e bananas; poupava-se assim a essa figura prazenteira e frágil de, como um provinciano, olhar para dentro de uma jaula e achar que já percebeu a selva por detrás das grades.
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